Esta série de entrevistas é uma iniciativa da AQC em apoio ao livro “Sick da Vida”, coletânea de entrevistas do cartunista Henfil organizadas pelo quadrinhista, jornalista, escritor e biógrafo Gonçalo Silva Jr. O livro foi lançado na plataforma Catarse pela Editora Noir. Por isso, pedimos que você apoie, compartilhe e comente. https://www.catarse.me/henfil
1. Como você conheceu o trabalho do Henfil?
A primeira vez que li aquele nome estranho (Ênfil? Rênfil? Enfíu?) no livro Dez em Humor eu, era criança ainda. Depois descobri que estava também no Pasquim, que a passava de mão em mão, assim como o tablóide Grilo, que pirateava todos os gringos do underground. Isso acontecia no colégio técnico Iadê (de desenho de comunicação) e arredores, onde prolongávamos o expediente estudantil, o bar Riviera. O Iadê por sinal produziu vários profissionais engajados. Eram nossos contemporâneos e colegas os cartunistas Sizenando, João Zero (fanzine Boca), Patrícia (revista Crás), Grillo (Notícias Populares), e a Crau aqui. Todos a seu modo tiveram influência do Henfil. A gente fazia curso extracurricular de teatro e eles encenavam os Fradins. Muito legal, aquele jeitinho sádico do Baixim, tudo feito ao vivo, isto me marcou bastante. Também vieram do Iadê o articulador da classe Alfredo Nastari (AGRAF), os jornalistas Silvia Poppovic e o Luiz Fernando Silva Pinto. Era muito forte a expectativa de você ser atuante. Dentro do colégio tinha um pensamento único e geral de que aquela situação de ditadura não podia persistir. Todo mundo tinha visão de esquerda, na vida mesmo, na forma de se relacionar e na arte. Era um publico adolescente aberto à influência da esquerda e de todos os movimentos modernos, de Jean Paul Sartre, da escola de Frankfurt, aos tropicalistas e a turma do Pasquim. A gente tinha uma visão muito avançada para época, se dizia vanguardeira. Vale lembrar que era a época da ditadura bem fechada e que a gente tangenciou o perigo em várias circunstâncias. Mas nesse contexto sombrio também brotavam movimentos nacionalistas libertários como o dos Secos e Molhados, dos baianos, de Milton Nascimento. Boa parte da juventude da época se sentia alinhada a todo esse movimento.
2. E qual era sua proximidade dos movimentos de cartunistas na época e depois?
Você sabe que, exceto nas ocasiões em que participei de projetos específicos como O Bicho, As Periquitas, 2º Encontro Lady’s Comics (mesa “As Precursoras”) e agora na Revista Pirralha, grande parte da minha vida estive bastante periférica em relação a todos esses movimentos, o que não me impediu de acompanhar à distância. Como a categoria dos cartunistas foi a primeira que me acolheu profissionalmente, em idade pouca, quase saindo das fraldas, sempre me senti parte da turma e, talvez por isso, acabei estando presente em outros momentos pontuais, específicos que se me gravaram indelevelmente na memória.
3. Qual foi o impacto dos Quadrinhos do Henfil que você sentiu?
Do ponto de vista profissional, não preciso dizer que o conhecia como qualquer um de nós: um mito sagrado. A princípio confesso que o sadismo do Fradim baixinho me chocava. Mais tarde me ocorreu que o cumprido seria o Betinho e Henfil o baixinho, com toda sua irreverência.
4. O que você mais lembra do Henfil?
O que eu consigo me lembrar do Henfil, além do seu programa de manhã na Globo. Lembro em especial de um no dia do casamento da Lady Di. Depois de sua morte, no primeiro Salão do Rio de Janeiro que levou seu nome. Este Salão ficava em algum lugar na Vieira Souto, em Ipanema. Parece que ele vivia em um apartamento, praticamente sem móveis, por ali também.
5. E você chegou a estar com Henfil?
Apesar de já ter estado perto dele algumas vezes (por alguns instantes) quando a redação do Bicho era n”O Pasquim, no segundo andar da casa da Saint Roman. Para mim, uma guria de 19 anos que tinha acabado de chegar, ele era uma entidade sagrada, além de muito bonito, mas que eu tinha vergonha de abordar.
6. Ele trabalhava junto com todo mundo no Pasquim?
Não, ele trabalhava incessantemente e sozinho numa sala vizinha à sala do Bicho, no segundo andar, e só entrava na nossa para usar a máquina copiadora Xerox. Me olhava com olhos prescutadores e profundos, se nos cruzávamos na escada, por exemplo. Eu arregalava os meus e uma vez ele perguntou se eu estava assustada. Foi a primeira vez que me dirigiu a palavra. Na hora do café, todo mundo -cartunistas, editores, secretarias, os moços do escritório, o vigia- ia para a cozinha, que tinha uma porta que abria para a vista do morro. Alguém sempre tinha comprado pãozinho fresco com manteiga e tomávamos com o copo de café com leite mais gostoso do mundo. Lembro de ser um momento de muita camaradagem -em que as diferenças se acabavam- e o que eu mais fazia era observá-los. Henfil tratava a todos com muita amizade e respeito, sobretudo os funcionários mais humildes.
7. E o reencontrou mais alguma vez?
Anos depois, ao voltar da China, encontrei-o em Piracicaba, Ele veio e sentou-se ao meu lado na platéia do anfieatro que ouvia o Nássara. Naquele ano, creio que 1977, eu ja não morava no Rio. O Henfil. me fez uma festa, como se já tivéssemos sido bastante íntimos. Me abriu um sorriso “Você por aqui?” Eu já mais desinibida, respondi: ” E você por aqui?” E eu quis saber sobre a China. Ele estava realmente impressionado. Mais um par de anos à frente vi-o num fim de semana na colônia de férias no sindicato dos metalúrgicos, na Praia Grande, durante um encontro com lideres sindicais para o qual que Laerte me convidou e me levou a participar. Henfil demorou a chegar porque havia tido um acidente e precisou receber uma transfusão de sangue no hospital. Mas veio, chegou com uma bengalinha e participou do encontro. Acho que cheguei a jogar ping pong com ele. Ao menos lembro dele no pátio, perto da mesa. A ideia que me passava é que ele era de uma humildade impar. Estava nessa reunião na posição de ouvinte. Só queria saber quais eram as reivindicações dos trabalhadores para ele poder desenhar o Ubaldo, o paranóico.
8. Acompanhava as entrevistas do Henfil na Imprensa?
A entrevista que ele deu que mais me marcou foi a da revista O Bicho sobre sua estadia nos EUA, a relação dele com os Syndicates. Na época a gente estava na luta contra a dominação do Quadrinho estadunidense nas tiras de jornais brasileiros e em prol de publicar uma revista de cartuns e quadrinhos não-enlatados. Essa era a discussão que estava na pauta do dia pra gente. Então quando ele veio com aquela entrevista “Fiquei Sick da vida, meu irmão” e ele dizia que tinha ido lutar contra o Syndicate por dentro. Ele tinha muita consciência da luta contra o sistema e achava que ia romper com o capitalismo por dentro. Ele tinha muita fé neste poder do cartum e do desenho de humor em transformar consciências e mudar a realidade. E dizia “Eu indo nos EUA e sendo publicado lá por uma agência, eu conseguiria ser publicado no meu país”. Mas eu lia tudo que ele publicava no Pasquim e alguns dos livros que ele escreveu: Diário de um Cucaracha, Henfil na China. Ahhh e o livrinho pequeno “Como Se Faz Humor Político” entrevista que ele deu ao jornalista e crítico musical Tárik de Souza. Lá ele falava que a inspiração dele era um cachorro preto atrás das costas: o prazo do fechamento do jornal. Ele falava da experência dele em produzir charges e quadrinhos. A gente sempre tem aquele complexo de fazer as coisas de última hora. E chargista de jornal é de fazer as coisas em cima do prazo, em cima da última notícia, na hora que está pra ir pra gráfica. Às vezes dá uma sensação de inadequação, de deixar pra última hora. Isso faz parte do processo do cartunista, então dá bem pra imaginar que a hora do ‘fechamento’, o ‘dead line’ é um baita de um cachorrão nas tuas costas -pronto pra te devorar- tem uma plaquinha na coleira escrito ‘PRAZO’. E você faz o desenho naquela tensão, e acaba dando uma característica no traço, mais rápido e mais espontâneo. Isso me marcou muito. Em outra entrevista que ele deu, não lembro aonde, ele reclamava de pessoas que faziam gestos por reflexo condicionado, automáticos. Ele se irritava muito com isso, achava que cada gesto tinha de ser pensado.
9. Qual é o tamanho da falta que o Henfil faz?
É o tamanho da falta que faz um luzeiro, um clarão de muito brilho. Henfil foi um dos luzeiros das nossas gerações. Ele marca uma época. Representou a cara do Pasquim e continua muito atual. É uma falta enorme. Senti sua perda como a perda de uma amizade querida que eu não teria mais chance de desenvolver. Enfim. HENFIL é referência, era e continua a ser aquela sumidade a quem os cartunistas recorrem tentando imaginar o que ele faria se estivesse aqui. O Henfil era muito alerta pra vida, acho que tinha a ver com a condição de hemofilia dele, como se a vida estivesse sempre escorrendo por entre os dedos e tivesse que estar muito atento pra não deixá-la escapar. Isso fazia dele um cartunista único, com otraço completamente caligráfico de quem escreve rápido, que influenciou gerações de cartunistas. O que seria de nós sem Henfil?
10. Henfil era um profissional multimídia, atuando na TV e no Cinema. O que achou das produções do cartunista em TV Home e Tanga, deu no New York Times?
Não vi nada dele no cinema. Eu já estava fora de São Paulo. Mas via TV Homem, dentro do programa TV Mulher da Marília Gabriela. Eu assistia todo dia e achava bem legal. Ficava feliz de vê-lo na TV, de ver o que estava fazendo. Lembro que encenavam uns quadros praticamente sem palavras. O quadro que me lembro era o do casamento da Lady Di, tinha uns caras todos vestidos de operários, começava a passar o casamento da Diana e príncipe Charles na TV, daí cada um pegava um companheiro e começavam a dançar uma valsa. Achei aquilo o maior barato. Fiquei refletindo como ele mostrava essa realeza no imaginário da população, que lhe chamava tanta atenção e desviava o foco de assuntos mais importantes e vitais. Mostrava um encantamento e alienação. Eram coisas que faziam a gente pensar. Henfil é isso: faz a gente pensar. Quem cumpre este papel hoje em dia é a cartunista Laerte. A charge dela não se esgota ali, você acaba sacando mais alguma coisinha. O Henfil, de outra forma, era mais panfletário mesmo! Todos trazendo isso da sua forma. É como se fosse a mola do pensamento que desperta. Isso não pode morrer jamais.
11. As novas gerações conhecem pouco do trabalho do Henfil e ainda é pouco compartilhado nas redes. O que fazer pra melhorar isso? O livro organizado pelo Gonçalo Jr pode ajudar?
A gente tem de compartilhar, compartilhar e compartilhar! Eu confesso que não sou uma pessoa muito compartilhadeira não, fico muito cansada com estas coisas de redes sociais, mas o sticker da Graúna com o coraçãozinho é o que mais uso quando quero enviar um coração pra alguém. Este livro editado pelo Gonçalo Jr e Editora Noir pode ajudar muito. A gente divulgado este livro, vai colocando as pessoas em contato com o Henfil. Não sei se o livro tem ilustrações, deve ter né? Mas é bem importante sim pra conhecer tudo que ele fez, pensou e disse. É desses autores que a gente tem que mergulhar e conhecer tudo que fez pra entender uma parte da história, do Brasil. Eu gosto de mergulhar em autores, agora estou mergulhando na Isabela Allende, quero ler tudo que ela escreveu, e comecei a ter acesso a seus livros só recentemente. Henfil? A nova geração tem que abocanhar mesmo.
12. O Brasil hoje está ‘sick da vida’ com tantos ataques à democracia, à inclusão social, racial e de gênero, à distribuição de renda? Ou a coisa precisa piorar mais pro povo reagir?
O Brasil tá doente sim. Tá puto da vida também. Mas eu acho também que os anticorpos estão em ação, né? Eu não tinha visto tanta juventude engajada como tenho vistohoje. E tá abrindo a cabeça para uma visão social. Eu acho que está ficando cada vez mais feio ser uma pessoa alienada. Por isso o Brasil tá sick da vida, tá puto, tá resistindo e tá reagindo, no sentido de responder a isso tudo. Existe o câncer e existe os combatentes ao câncer, estamos deste lado e não vamos largar mão!
13. Como Henfil estaria reagindo à sanha fascista, totalitária e anti-democrática que abocanhou os três poderes?
Imagine se ele estivesse aqui, agora. Ele estaria à toda, produzindo mais do que nunca. Estaria em campanha em todas as mídias. Estaria na rua, em tudo quanto é lugar. Estaria mais ativo do que nunca e formulando outras formas de agir, outras ideias, estratégias. Ele continuaria a ser um militante full-time. Temos chargistas geniais, criticando o que está acontecendo, a gente os vê toda hora, brilhantes. Mas este engajamento dele muito dirigido, uma pessoa que não tinha nem móvel na casa, vivia pro desenho e pra conscientizar as pessoas. Não sei se temos alguém com este engajamento que ele tinha. Lembro dele no Pasquim, ele não tinha tempo nem pra conversar. Era ele desenhando o tempo inteiro. Desenhando, desenhando, desenhando. A gente passava pela sala com a porta aberta e só via ele de costas. Todos nós estamos segmentados em nosso interesses. Não sei qual de nós é assim… Mas tenho uma certeza, se Henfil estivesse entre nós, em carne, osso, estaria na Revista Pirralha! https://www.facebook.com/RevistaPirralha
https://revistapirralha.com.br/
https://www.instagram.com/revistapirralha/
14. Henfil foi um dos fundadores do PT, que se propunha a transformar radicalmente a sociedade. Esta décima-quarta pergunta é o espaço pra suas considerações, não finais, mas futuristas. É possível ainda transformar o país de forma radical?
O fato do Henfil ser um dos fundadores do PT é um ponto importante pra se levar em conta, principalmente os que falam mal do partido. É bom lembrar que as melhores cabeças estiveram neste início do processo de redemocratização. Vários operários, sindicalistas, intelectuais como Florestan Fernandes e vários artistas como Henfil e muitos cartunistas, gente de todas vertentes e alas, né? Vieram de caminhos distintos, articulações distintas. Uns mais à esquerda, mais revolucionários, outros mais conciliadores. O PT foi o celeiro onde foi colocada toda essa gente que estava descontente e queria mudança. Na época o PT era visto como uma grande promessa, o Lula já despontava como uma liderança naqueles comícios no estádio de S. Bernardo do Campo. Isso aí eu vi no comecinho, quando participei daquele encontro durante o fim de semana na colônia de férias na Praia Grande. A carga emocional de união que tinha ali era enorme, mesmo pra quem estava só observando, mostrava que você estava ali tomando partido. Eram jornalistas e cartunistas misturados aos sindicalistas, conversando junto sobre o que estava acontecendo, tomando café junto, comendo junto, bebendo junto, dormindo junto e formulando os materiais que iam ser produzidos nos jornais sindicais e grande imprensa. Acho super importante conhecer esta realidade e acordar esta turma que fica falando bobagem por aí. Aliás, eles nem pensam no que falam, só repetem as bobagens que alguém plantou. Existe tanto anti-petismo baseado em fatos duvidosos divulgados amplamente pela imprensa. Demonizar um partido que tem uma história dessa é, no mínimo, falta de bom senso.
Como foi a sua participação na administração petista da prefeitura de Ilha Bela?
Quando começaram as denúncias do Mensalão eu estava filiada ao PT aqui na Ilha Bela, ajudando a candidata do PT à prefeitura. Nós fizemos uma reunião pra todo mundo decidir o que ia fazer. Estava todo mundo chocado. Eu entendi que o mensalão tinha sido a única forma de garantir votação de pautas sociais, não entendi como corrupção individual. Penso que não é assim que tem de ser. Alguns pularam fora e a gente achou que não, a gente tinha entrado com o propósito de fazer uma coisa séria. O fato de algumas pessoas terem feito coisas erradas, não queria dizer que todos filiados fossem venais. Depois foi esvaziando e não elegemos mais ninguém. O povo aqui da Ilha sempre foi muito ligado à classe dominante, se sente bem assim, se enontra na praia, não gostam de confronto… O PT foi fundado duas vezes aqui na Ilha e participei das duas. Perguntaram para uma senhora da idade da minha mãe por que ela estava se filiando ao partido e ela respondeu: “Porque eu tenho vergonha na cara!” O PT era um baluarte de ética na época. Apesar da gete saber que nem todas pessoas que estavam lá pensavam da mesma maneira. Tem quem entre na política de forma individualista ou corporativista. E acho que um governo que represente o povo brasileiro não pode ser corporativista, tem que ver a sociedade como um todo, ver todas as forças, considerar a parte ambiental que sustenta tudo. Nós temos que pensar como construir este governo enquanto sociedade civil participativa, enquanto membros de partidos que tenham algum poder, a gente tem que ajudar a reconstruir, remendar este Brasil, ressuscitar este Brasil. A gente tem este dever, porque nossos netos estão aí, né? O que vamos deixar pra eles?Tem uma humanidadezinha aí pra sobreviver, né? E um planetinha azul… Tomara que a maioria deles seja bem educada, bem consciente.
QUEM É CRAU DA ILHA
Crau França é formada em Engenharia de Aquicultura na UFSC e Tecnologia em Produção Multimídia no Centro Universitário Módulo, estagiária na empresa Hellenic Centre for Marine Research, fez Mestrado em Aquicultura no Instituto de Pesca -APTA-SAA-SP, foi diretora da CooperAqua, Secretária da Prefeitura de Ilhabela. Publicou cartuns e foi editora na revista O Bicho. Foi idealizadora e editora de arte na empresa Revista As Periquitas. Faz parte do Conselho Editorial da Revista Pirralha. Recebeu o Troféu da AQC como Mestra do Quadrinho Nacional no 36.º Prêmio Angelo Agostini.
Perfil no FB:
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Crau no instagram:
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Entrevista:
https://ofolhademinas.com.br/materia/32285/coluna/crau-e-as-periquitas