(Edgard Guimarães, editor do Zine Quadrinhos Independentes)edgard@ita.br
http://www.gibindex.com/content/edgard-guimarães
“O texto completo do Projeto de Lei foi publicado no “QI” 89
(e aqui nesse blog)
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Primeiramente algumas observações. Como este Projeto é de 2006, a esta altura é bem provável que já tenha sido esquecido pelos parlamentares. Mesmo assim, acho que vale a pena analisar seu texto. Acho também que uma lei relacionada às histórias em quadrinhos é importante, e poderia enfocar o tema sob vários aspectos, cada um com seus pontos positivos e negativos. Considero, no entanto, este Projeto de Lei do Deputado Simplício Mário confuso, mal redigido, com muitas falhas e omissões, texto muito geral e vago, e com algumas determinações impossíveis de se colocar em prática.
A frase inicial do texto, que é repetida quase sem mudanças no Artigo 1º, diz uma coisa, mas o assunto principal do Projeto de Lei é outro. No início, “estabelece mecanismos de incentivo para produção, publicação e distribuição de revistas de quadrinhos nacionais”. No entanto, o cerne do Projeto de Lei é a obrigatoriedade de uma cota de 20% de publicação de quadrinhos nacionais. Ora, obrigar não é incentivar, na verdade um é o oposto do outro. É melhor esquecer esta frase inicial e o Artigo 1º e considerar a Lei como uma lei de cotas obrigatórias. Aproveito para dizer que não vejo nada errado em uma lei que obrigue as editoras a publicar uma certa porcentagem de quadrinhos nacionais. Todos nós somos obrigados a um monte de coisas. Somos obrigados a pagar impostos, a obedecer regras de trânsito, enfim, uma infinidade de obrigações. Ser obrigado a alguma coisa faz parte do contrato que define uma sociedade organizada. A luta que se deve travar não é para deixar de ser obrigado, mas para que as obrigações sejam justas. O ponto criticado no Projeto de Lei é que se apresentou como um mecanismo de incentivo, quando de fato não é. Mecanismo de incentivo seria, por exemplo, diminuição de impostos para publicação de quadrinhos nacionais. Mas este Projeto de Lei não menciona nada disso.
Voltando à análise do Projeto de Lei considerando que seja uma lei de cotas. O Artigo 2º está bem redigido, de forma bastante clara. “As editoras deverão publicar um porcentual mínimo de 20% de histórias em quadrinhos de origem nacional.” O parágrafo 2º estipula de forma clara como esta porcentagem irá crescendo gradualmente. O parágrafo 1º começa bem redigido, mas é atropelado no final. A redação correta seria: Considera-se história em quadrinhos de origem nacional aquela criada por artista brasileiro ou estrangeiro radicado no Brasil e que tenha sido produzida para empresa sediada no Brasil. É uma boa definição, engloba toda produção feita dentro do país para publicação original no próprio país. Inclui HQs de personagens estrangeiros, como Disney, feitas por estúdios brasileiros, e exclui HQs feitas por brasileiros para editoras estrangeiras, como Marvel e a DC, por exemplo. Com isso, procura-se valorizar o trabalho de produção feito por brasileiros e de publicação feito por empresa sediada no Brasil. Determinar se uma produção é brasileira ou se uma editora está sediada no Brasil é coisa fácil, não dá margem a dúvidas, portanto a posterior fiscalização do cumprimento da lei seria de fácil implementação. O artigo não impõe uma obrigatoriedade de “temática brasileira” nas HQs, algo bastante subjetivo, de difícil determinação.
Este Artigo 2º tem duas falhas gravíssimas. A primeira é 20% de quê? Do número de títulos? Do número de páginas produzidas? Da tiragem? Não tem sentido estipular 20% da tiragem, pois uma lei pode obrigar uma editora a publicar mas não um leitor a comprar. Portanto, a tiragem de cada revista tem que continuar definida pela lei de mercado. Se uma revista do Homem-Aranha vender mais do que uma revista nacional, paciência. O mais razoável é que os 20% sejam de páginas publicadas. A distribuição dessas páginas em quais e quantas revistas fica de acordo com a conveniência da editora. A outra falha desse Artigo 2º é que não se estabelece pena para o não cumprimento da cota. A editora é obrigada a publicar 20% de quadrinho nacional? É, e se não publicar, acontece o quê? Uma lei para ser cumprida precisa deixar clara a penalidade para seu não cumprimento.
O Artigo 3º teve boa intenção, mas da forma que foi redigido é totalmente irreal. A lei quer que o distribuidor também obedeça à cota de 20%. Mas o distribuidor não tem poder para dizer o que a editora deve produzir. Se a editora chega com um lote de revistas para distribuir e não tem nenhuma com material nacional, a distribuidora deve fazer o quê? Recusar o lote? O objetivo do artigo foi querer impedir que uma editora, para burlar a lei, imprimisse uma pequena quantidade de revistas com material nacional e não as enviasse para o distribuidor. O pensamento está correto, mas deve ser dirigido à editora. Ou seja, a editora é obrigada a publicar e entregar ao distribuidor a cota de 20%.
No Artigo 4º, o projeto quis incluir na obrigatoriedade de publicação também as tiras para jornais. Mas por que não manteve a cota de 20%, que pareceu boa para as revistas de banca, e, sem explicação, aumentou a cota para 50%? Há atualmente jornais que publicam mais de 50% de tiras brasileiras, a lei não impediria isso, mas para viabilizar a publicação de tiras em todos os jornais, seria coerente manter a cota mínima de 20%.
Os Artigos 5º e 6º são muito bonitos, mas totalmente inúteis, pois são suficientemente vagos para significar alguma coisa. Claro que o que está escrito nesses artigos têm importância, mas não creio que seja matéria para esta lei específica. Por exemplo, a criação desta ou daquela disciplina dentro de um determinado curso é atribuição das universidades sob a fiscalização do Conselho Federal de Educação. Também não creio que seja da alçada desta lei o tipo de programa a ser estabelecido pelas agências de fomento. Creio que há um grande equívoco nestes artigos. Uma lei deve ser objetiva, com determinações fáceis de colocar em prática.
O trecho inicial da justificação é uma sucessão de informações jogadas sem muita coerência, cuja quantidade de erros conceituais e dados falsos impressiona. A revista “O Tico-Tico” foi a primeira do mundo a trazer histórias completas? O que é esta ‘As Canções de Cego’, considerada a primeira HQ do mundo? A maioria dos autores brasileiros segue o estilo comics? E por aí vai. Mas, apesar deste “samba do cartunista doido”, a certa altura o texto traz informação importante. “O projeto de lei (…) leva em conta não apenas o potencial econômico do mercado consumidor brasileiro, que hoje beneficia apenas a indústria de entretenimento norte-americana e outras nacionalidades, mas também a importância de fomentar um elemento de identidade cultural e manifestação artística.” Este parágrafo está muito bem colocado. Enfatiza a importância de um quadrinho nacional dos pontos de vista cultural e econômico. Mais à frente, o texto vislumbra a produção de quadrinhos brasileiros como um produto de exportação e arrecadador de divisas. É preciso ter em mente essa possibilidade. Quando uma multinacional como a Panini se instala no país, de um lado, ela pode trazer de fora material para publicar aqui, mas, de outro, deve levar o material produzido aqui para fora.
Alguns comentários adicionais são necessários, mas agora sem ficar restrito ao texto do Projeto de Lei.
Muitas pessoas ficam incomodadas quando o assunto é uma lei de reserva de mercado para os quadrinhos nacionais. Algumas perdem todo o equilíbrio emocional e partem para agressões, no mínimo, verbais. A impressão que se tem é que uma pessoa assim não conseguiria viver sem esses quadrinhos estrangeiros. E no caso específico do Projeto de Lei do Deputado Simplício Mário, na pior hipótese, seria a redução de 20% da publicação de revistas com HQs estrangeiras. Isso se considerarmos que o mercado já está saturado e que para publicar 20% de quadrinho nacional precisaria diminuir 20% na publicação de quadrinho estrangeiro. Ou seja, uma redução de 20% nos quadrinhos estrangeiros já tem provocado reações extremadas em várias pessoas. Ora, qual é este quadrinho estrangeiro publicado no Brasil? Por acaso é a fina flor da produção internacional, aquele material que realmente faria falta à formação cultural de uma pessoa? Do volume total de quadrinhos estrangeiros publicado no Brasil, a grande maioria é totalmente dispensável. As fases atuais dos super-heróis da Marvel e DC constituem-se em verdadeiras afrontas ao leitor mais antigo. Essa Crise de sei lá o quê, esta guerra civil, tudo isso é uma verdadeira arapuca criativa. Os roteiristas entraram num beco sem saída. Logo, a solução será fazer de conta que isso não aconteceu para conseguirem criar novas histórias. Dos mangás, nem se fala. É um mais nojentinho que o outro. A grande maioria das obras de qualidade feita em outros países continua inédita por aqui. Só recentemente o leitor brasileiro pôde terminar de ler a série original de Ken Parker, que é da década de 1970. O mesmo em relação a Lobo Solitário. E no caso de Ken Parker ainda faltam várias histórias, sem perspectiva de saírem por aqui. Também só recentemente as histórias de Carl Barks tiveram publicação decente no Brasil. E as obras-primas do quadrinho argentino? “El Eternauta”, “Mort Cinder” e “Sherlock Time” são inéditas por aqui. “Alvar Mayor” teve publicação truncada já há algumas décadas. Nem merece comentário a salada que tem sido a publicação da linha Vertigo no Brasil. E as centenas de séries européias de qualidade, cadê? “Blake e Mortimer”, “Vagabundo dos Limbos”, “Valerian”, etc. Todo leitor brasileiro que busca trabalhos de maior qualidade tem sobrevivido muito bem nesses anos todos sem todo esse material. Qualquer pessoa pode muito bem sobreviver à diminuição de 20% desse atual lixo norte-americano e japonês. Pois, se não puder, o caso é grave e exige tratamento especializado. A boa notícia é que atualmente há tratamento para qualquer coisa. A má notícia é que o mesmo não se dá com a cura.
Outra questão muito alardeada é que uma obrigatoriedade de qualquer coisa é coisa de ditadura. Ou melhor, que num regime democrático cada um deve ter liberdade para comprar o que quiser. Ah, sim, “eu trabalhei, ganhei o meu dinheiro e compro o que eu quiser com ele”. Certo? Errado! Espero não estar desfazendo uma de suas mais caras ilusões, mas Deus não criou o Universo para girar em torno de você. Existe um interesse coletivo que é maior do que o interesse particular de cada um. A Constituição e suas leis deixam claro que o interesse da sociedade tem precedência sobre os interesses individuais. E cabe ao Estado o gerenciamento do país de modo que seu funcionamento seja estável. O que isso significa? Que o país como um todo deve ser capaz de gerar riquezas que sirvam primeiramente ao seu próprio povo. Se o que é produzido serve à população e há excedentes, estes podem ser exportados. Se o capital produzido é suficiente para os investimentos internos para manter e aprimorar a estrutura do país, e há sobra, esta pode ser gasta com importações. Se esta equação básica não é satisfeita, o país definha, empobrece, degenera, como já se viu muitas vezes na História mundial. Na própria História do Brasil, o desperdício de divisas por governos irresponsáveis tem sido mais a regra do que a exceção. Nos governos democráticos, procura-se usar uma série de mecanismos que não sejam visivelmente autoritários. Por exemplo, para evitar que a importação de determinados produtos destrua a indústria local, criam-se taxas de importação. Em certos casos pode-se mesmo proibir a importação de determinado produto. De uma maneira simplificada, a idéia é que toda área de atividade econômica, independentemente, fizesse cumprir o balanço necessário para a estabilidade do país. Ou seja, na área editorial, a maior parte da produção deveria ser de material impresso no país a partir de trabalhos feitos no país. O excedente poderia ser gasto com importações de publicações estrangeiras ou de material estrangeiro para publicação no país, desde que esta porcentagem não comprometesse a estabilidade do setor. E qual seria esta porcentagem? Certamente não é o 80% que o Projeto de Lei estipula. Quem imagina que um setor econômico possa sobreviver produzindo 20% do consumo e importando 80%? E, no entanto, é esta proporção definida no Projeto de Lei em análise que tem provocado a ira das pessoas que não suportariam viver sem os quadrinhos estrangeiros. Um país sério, como há tantos no mundo, seja com mecanismos mais autoritários ou com recursos mais democráticos, como tarifação ou leis de incentivo, não permitiria que algum de seus setores da atividade econômica ocupasse apenas uma faixa de 20% do mercado, sofrendo uma sangria de 80% dessas divisas para países estrangeiros. Um país sério estabeleceria mecanismos, quaisquer que fossem, que garantissem ao menos 80% da produção de um determinado setor a cargo da população do próprio país. É claro que uma sociedade moderna é bastante complexa e permite que em alguns setores a porcentagem de produção feita no país seja menor, compensada por uma produção maior em outros setores, de modo que no total a estabilidade se mantenha. O que isso significa é que o domínio quase total de quadrinhos estrangeiros nas bancas e livrarias brasileiras, com os pagamentos de direitos enviados para o exterior na quase totalidade, tem que ser compensado por outros setores de atividade econômica para que haja equilíbrio na economia geral do país. Então quando uma pessoa gasta seu dinheiro, que ganhou com o seu trabalho e sobre o qual tem todo o direito, comprando apenas quadrinhos de origem estrangeira, está lesando outros setores da atividade econômica que tiveram que produzir mais para compensar este desperdício. Como já foi dito, este tipo de coisa é permitido numa sociedade capitalista complexa sob regime democrático, e por isso cada um pode continuar gastando seu próprio dinheiro do jeito que quiser sem dar satisfação a ninguém, como se este dinheiro tivesse sido gerado por uma fonte metafísica absoluta, e não fosse o resultado de um emaranhado de relações de produção envolvendo uma quantidade inimaginável de pessoas efetivamente produzindo riquezas. Com exceção de um ou dois ermitões esquecidos nos cafundós do Judas, toda atividade econômica exercida por uma pessoa sofre influência do resto da sociedade, e, por sua vez, o influencia. Portanto, seu dinheiro não é tão seu assim. Para ele chegar até você, de um jeito ou de outro, seja vendendo biscoito, recebendo salário do governo ou pedindo mesada para a mamãe, ele não poderá ser desviado pelo caminho, porque um outro sujeito achou que tinha todo o direito de mandá-lo para fora do país em troca de um gibi importado.
Assim, vivemos nesta sociedade onde uma parcela da população gasta uma riqueza que não produziu em sua totalidade, enquanto outra parcela deverá compensar este gasto produzindo mais do que deveria. As revistas de quadrinhos são uma parcela, imagino que até bem pequena, em meio à quantidade de produtos estrangeiros que entram no país, limpando o excedente de riqueza gerado por setores realmente produtivos. Filmes, seriados, automóveis, equipamentos eletrônicos, roupas de grife, uma infinidade de coisas que poderiam ser produzidas por brasileiros, gerando empregos dentro do país, aumentando a renda média da população, e melhorando a sociedade como um todo. Por fim, esta defesa intransigente da liberdade de mercado, cada um faça o que quiser com o dinheiro que por ventura recebeu, não tem todo esse apoio incondicional da parte dos países ricos, quando o prejuízo é para eles. Os Estados Unidos, o berço desse capitalismo inconteste, não tem qualquer pudor em impedir importações que não lhes sejam convenientes, e toda a pressão que tem feito para que se feche o acordo da Alca não é por qualquer tipo de altruísmo ou idealismo.”
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