Capturar o alma do artista Millôr Fernandes (1923-2012), carioca do Méier, é um problema para qualquer curador. Ele próprio não via com simpatias esta palavra, preferia a denominação de jornalista. Dizia que tudo que produziu na vida, excetuando uma ou duas coisas, foi por encomenda, e se insere na indústria cultural. Embora muita coisa do que produziu possa ser considerada arte, como o desenho, teatro, poesia, crônicas, achava que isto tudo caberia no guarda-chuva chamado jornalismo. Professava que nestes suportes todos o que mais fez foi interpretar o mundo em que viveu, mais precisamente o homem. Não por acaso uma destas atividades, por incrível que pareça, foi na canção popular, chegando a participar inclusive do célebre Festival de Música da Record (1966), em que A Banda e Disparada se sagraram vencedoras. Fez a música e a letra de O homem, o que corrobora a idéia de que a humanidade escorre por seus desenhos e textos.
O cineasta Walter Salles num dos prefácios de livros, o considera renascentista, pois foi um homem que entendeu seu tempo, participou de quase todo tipo de iniciativa cultural, midiática vamos dizer assim. Para Salles, Millôr criou diálogos insuperáveis para o filme Terra Estrangeira, como também já tinha produzido roteiros de filmes a partir dos anos 1960. Apresentou programas de televisão, na incipiente TV dos anos 1950, como o Lições de um ignorante, onde foi até censurado por JK. Nos anos 1960 participou do Jornal de Vanguarda, importante programa de TV, que marcou época. Nas revistas O Cruzeiro e A Cigarra, escreveu reportagens, fez colunas de humor, copidescou, diagramou e traduziu. Chegou a revista O Cruzeiro ainda rapazinho, quando ela tinha apenas dois funcionários, um diretor e mais ele próprio. Ajudou a catapultá-la para o posto de principal mídia impressa daqueles tempos.
No teatro também foi um homem que atuou profundamente, a partir de uma encomenda que teve em 1950. Escreveu mais de cem peças, uma das primeiras, que mais fez sucesso, foi Um elefante no caos. Adaptou Vidigal: Memórias de um sargento de milícias (1982), da célebre obra de nossa literatura. Criou peças com monólogos, com vários personagens, e espetáculos como Liberdade Liberdade (1966), em parceria com Flávio Rangel. Também escreveu shows musicais, como Bons Tempos, Hein!? (1979), para o MPB 4; e De repente (1985), para Arthur Moreira Lima. Alem de tudo isto ainda traduziu dezenas de peças, que fizeram enorme sucesso e alimentaram nosso teatro por décadas, trabalhos estes que são considerados pela critica como de alto nível.
Como cartunista, foi um dos mais pródigos. Primeiro começou assinando como Vâo Gogo, pseudônimo que depois abandonou, assumindo com o próprio nome. Paulo Francis dizia que Millôr confessou-lhe que começou a usar este pseudônimo porque queria guardar seu nome real para atividades artísticas mais “nobres”, como por exemplo teatro. Mas a partir de um certo momento mudou de idéia e assumiu com seu próprio nome os desenhos e textos em geral. Na área de humor achava que ninguém poderia desenhar no século XX sem conhecer Picasso e Saul Steinberg, este último considerava o maior artista desse século. Seu traço visivelmente influenciado pelos gênios acima citados, evoluiu a partir dos anos 1960 para patamares raramente vistos em nosso país e no mundo todo. Teve seu desenho publicado em grande parte das iniciativas culturais de seu tempo. Foi muito influenciado pelas histórias em quadrinhos americanas, tendo sido inclusive tradutor e letrista dos suplementos, que ajudaram a implantar no Brasil a linguagem americana, com personagens do tipo Flash Gordon e Fantasma. Esta influência carregou por toda a vida, sendo que nos seus trabalhos as tiras e os quadrinhos estiveram muito próximos.