1. Como você conheceu o trabalho do Henfil? Lembra da ocasião?
Eu conheci o trabalho do Henfil muitos anos após sua morte. Apenas conhecia o seu nome até então e na verdade tive o meu primeiro contato, bastante breve, em 1990, na casa do meu professor de desenho na época, o quadrinhista Ismael dos Santos. Naquela época eu viajava quase todo final de semana para estudar na sua escola que ficava na Lapa e geralmente eu dormia na própria escolinha. Num desses finais de semana ele me convidou para dormir na casa dele, pois os filhos estavam em viajem de trabalho ou alguma coisa assim e teria como usar o quarto deles. Na manhã seguinte eu fiquei no estúdio que ele tinha nos fundos da sua casa, um lugar repleto de materiais de desenho, livros e revistas. Ali eu encontrei um exemplar de uma coletânea de tiras do Henfil e fiquei entretido enquanto o Ismael ainda não havia chegado no estúdio. Para mim foi extremamente impactante, porque a leitura era fácil, rápida, com um desenho leve, simples, rápido e ao mesmo tempo seu humor era pesado, denso, conseguia transmitir a tensão daqueles anos de chumbo que ele publicou no Pasquim. Eu fiquei anos sem ter contato com nada dele até que alguns anos mais tarde numa edição da Bienal do Livro eu encontrei a coleção de suas tirar publicadas em uma série de livros. Comprei todos. Eu considero aquele momento minha real interação com a obra do Henfil.
2. Qual foi o impacto inicial?
Não sei se dá para descrever porque o desenho era simples e rápido, quase feito de qualquer jeito, no entanto, era cativante, gostoso de ver, engraçadíssimo. A criatividade do Henfil era preponderante no seu trabalho. Não era necessário um grande e complexo cenário, personagens cheios de detalhes, truques e mais truques como enquadramentos radicais, diagramações arrojadas. Tudo estava ali servindo da maneira mais simples e direta possível, apenas sendo usado para contar uma história, e bem contada. Mas havia a história, o contexto histórico, o humor. mas não um humor boboca, sem direção, sem função. Seu humor era certeiro, ácido, porque não dizer incômodo porque mexia com alguns padrões que eu tinha como sendo a maneira de se fazer tiras, com muitas nuances, muitas camadas. Até o espaço vazio funcionava. E o traço… era magia pura. Eu fiz da experiência de ter a coleção dos trabalhos do Henfil uma oportunidade de aprender tudo o que me era possível. Tanto que hoje quando vou montar um layout de HQ eu faço como imitando os desenhos do Henfil.
3. O que chamou mais atenção o humor escrito, as gags visuais ou o traço?
Impossível dizer uma coisa só. Era a obra, não tem jeito. O resultado final chama atenção. Mesmo se você não quiser ler, sem que você perceba já está lendo as tiras. É impossível resistir. O desenho chama atenção a ponto de você ler e continuar lendo tudo até o fim, o trabalho dele é magnético, te prende e ao mesmo tempo soa despretensioso.
4. Seu trabalho teve influência direta? Se teve, em que sentido?
Evidente que teve, muito mais do que dá pra se imaginar. Na composição dos layouts de quadrinhos eu costumo usar muito a maneira dele montar as sequências das cenas muitas vezes baseadas apenas nas expressões dos personagens, usar a diagramação a serviço da história, perceber que uma imagem pode ser resolvida com poucos traços, aliás montar uma imagem com poucos traços ajuda a resolver uma cena, mesmo que o desenho final não seja composto de poucos traços. Eu também aprendi a valorizar a “sujeira” no desenho, aquela sujeira do desenho que parece não ter sido terminado, a beleza do traço corrido e a valorizar textos e sequências que possam ser um pouco mais pesados de uma maneira que seu peso não fique tão evidente. Eu juro que ainda não cheguei a seus pés, mas que isso me influencia, me influencia. Inclusive existe um projeto que está parado por um tempo de desenvolver uma espécie de fanzine com um grupo de artistas periféricos de um coletivo que eu me relaciono aqui em Bauru que terá um trabalho de tiras de quadrinhos meus representando a realidade da periferia, do povo preto, pobre e periférico que é a reprodução do estilo do Henfil sem tirar nem por. Eu penso que realizar esse projeto adotando o estilo do Henfil é o maior presente que eu posso dar ao projeto, porque mostra uma realidade crua de uma parcela considerável da população brasileira com um tipo de arte que ao meu ver melhor representa essa brasilidade, essa simplicidade, essa crueza.
5. Qual foi a impacto dos Quadrinhos e Charges do Henfil na Imprensa Sindical? E na esquerda? E entre seus amigos?
A maioria das pessoas que eu conheço talvez não conheça o seu trabalho e se conhece não conhece muito a fundo. Eu tenho contato com muita gente de idade bem mais nova e gente que não teve a mesma sorte de uma formação artística tão privilegiada como a minha, tanto que meu desejo é fazer de alguma maneira com que essa nova geração tenha um canal para conhecer certas coisas, certas realidades e certas linguagens, dentre elas a linguagem desenvolvida pelo trabalho do Henfil. Quanto a imprensa sindical e nada posso dizer, eu não tenho contato com ela. Na esquerda eu vejo que o trabalho do Henfil é mais influente entre os mais velhos, não está muito presente entre o pessoal mais novo, parece que faz parte do imaginário da esquerda sem que eles saibam exatamente do que se trata. As novas gerações demonstram muito poucas referências com coisas anteriores de suas gerações, coisa que não havia na minha geração, o que me preocupa porque eles perdem muito em termos de repertório de tudo.
6. Acompanhava as entrevistas do Henfil na Imprensa?
Eu não tive como, eu sou de uma outra geração. Quando eu ouvi falar do Henfil pela primeira vez foi quando saiu a notícia da sua morte.
7. O que achou da iniciativa da Editora Noir em reunir estas entrevistas em um livro? Que efeito acha que este livro terá em você e nos demais leitores?
Mais do que necessário, essencial para que sua imagem, sua obra e sua mensagem possam permanecer.
8. Sabia que Henfil era um profissional multimídia, atuando também na TV e no Cinema?
Não tinha conhecimento disso.
9. Pra você, qual é o tamanho da falta que Henfil faz?
Do tamanho que faz a falta de uma esquerda combativa e atuante num momento histórico como o atual.
10. As novas gerações conhecem pouco do trabalho do Henfil. Apesar de uma exposição de originais no Centro Cultural Banco do Brasil (2005) no Rio e em SP ter tido público recorde na época, o trabalho dele ainda é pouco compartilhado nas redes. O que fazer pra melhorar isso? O livro organizado pelo Gonçalo Jr pode ajudar?
É preciso ir até aonde o povo está, como já dizia Fernando Brandt. Seu trabalho precisa existir nos meios digitais, mídias sociais, nos sindicatos, escolas, faculdades, grêmios estudantis, etc. Seu trabalho precisa habitar os locais mais variados, as periferias, os movimentos sociais. As pessoas precisam conhecer o que foi e como foi a resistência na época da ditadura para compreender como se faz uma resistência, porque a esquerda está muito dissipada, muito pouco aguerrida, precisa atuar, precisa de uma injeção de inspiração. O povo precisa sonhar, precisa aprender a lutar pelos seus direitos, a correr atrás, a se manifestar, mostrar sua indignação, ser protagonista do seu próprio país.
11. O Brasil hoje está ‘sick da vida’ com tantos ataques à democracia, à inclusão social, racial e de gênero, à distribuição de renda? Ou a coisa precisa piorar mais pro povo reagir?
Da maneira como a coisa está, infelizmente, ainda vai piorar e piorar muito mais. Não existe mobilização, não existe consciência de classe, não existe politização, não existe ação, não existe combate, não existe nem mesmo um ensaio para que o nosso lado construa um projeto de país verdadeiramente democrático e livre. As pessoas se contentem apenas em deixar de perder mais direitos e nem isso estão conseguindo. Nosso país está se transformando no inferno na terra e todos continuam querendo, insistindo em viver suas vidinhas como se fosse possível haver normalidade. É muito triste tudo isso, os demônios criaram coragem, estão dançando e rindo de tudo e todos enquanto que os bons criaram vergonha de saírem a luz do sol. Eu nunca poderia imaginar que fossemos chegar a esse ponto. E a tendência é piorar porque o lado de lá está apenas começando e eles não irão parar os ataques enquanto a esquerda não virar o jogo. Não irá aparecer nenhum salvador vindo dos céus para nos libertar de todo mal e iniquidade. É melhor que todos nós acordemos.
12. Como Henfil estaria reagindo à sanha fascista, totalitária e anti-democrática que abocanhou os três poderes?
Eu acho que ele estaria fulo da vida com tudo isso e principalmente, com a incapacidade de mobilização do nosso lado.
13. Henfil foi um dos fundadores do PT, que se propunha a transformar radicalmente a sociedade. Esta décima terceira pergunta é o espaço pra suas considerações, não finais, mas futuristas. É possível ainda transformar o país de forma radical? O humor entra nisso?
É possível, mas para isso ser possível é preciso ser radical, parar de fingir que não existe luta de classes, parar de ficar propondo conciliação porque a nossa burguesia foi quem ultrapassou os limites de institucionalidade. Está tudo errado. O sistema está errado. Não dá para querer salvar o que está destruído. Se o PT quiser MESMO salvar este país vai ter que ser bem mais radical em suas propostas e em suas ações do que foi em 2002. O Brasil não é o mesmo, o mundo não é o mesmo, não há mais espaço para uma normalidade que ninguém está disposto a bancar, vai ser preciso jogar duro e pesado porque o lado de lá já está jogando pesado, sem seguir nenhuma regra, estamos sob o vale tudo de gente que não teme nem a morte e se a gente não fizer alguma coisa não sobrará esquerda para contar a história, provavelmente não sobrará nem Brasil, talvez não sobrará história.
CONTATO
(*) Flavio Roberto Mota é ilustrador, chargista, cartunista, membro da AQC e da Revista Pirralha. flaviormota@gmail.com Oferece serviços de ilustração e quadrinhos através do Estúdio Tris. https://www.facebook.com/FlavioMotaIlustra
Trabalhou como ilustrador, web-designer e assistente de estúdio em Carillo Pastore Euro RSCG, Totem, Terra Networks, McCann Erickson. Estuda na UNESP. Estudou Animação 2D/3D no CAV – Centro de Audiovisual São Bernardo do Campo.
https://www.facebook.com/flaviormota Criou a página de Charges e Cartuns: https://www.facebook.com/Groselha.Grafica