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AQC ENTREVISTA: NILSON AZEVEDO (*) SOBRE HENFIL

1. Como você conheceu o trabalho do Henfil?

Havia um jornal aqui em Minas que, durante a década de 1960, era mais lido do que o conservador Estado de Minas, chamava-se Diário de Minas. Além da concepção visual moderna, a maior atração do jornal era uma coluna de futebol chamada Dois Toques assinada pelo torcedor do América Márcio Rubens Prado (um cronista do naipe de Rubem Braga e Fernando Sabino) ele era o ‘toque 1’ da coluna. Na parte de baixo da coluna vinha o ‘toque 2’: as charges de futebol do atleticano Henfil (que eu já conhecia da revista Alterosa, versão mineira de O Cruzeiro)… Nela o Roberto Drummond tinha forçado o Henfil a virar chargista e publicar pela primeira vez os dois Fradinhos. Além da charge de futebol, Henfil publicava diariamente mais cinco charges políticas. Os leitores compravam o jornal avidamente para ver o Henfil. Isso era antes do AI-5. O Henfil esculachava a Ditadura, chegando a ilustrar todas as piadas que se contavam sobre a burrice do Costa e Silva ou sobre o pescoço (ou a falta dele) do Castello Branco. Coisas que ficaram impossíveis depois do AI5. Na época (estou falando entre 1965 e 67), o movimento estudantil era muito forte e toda semana tinha passeata com forte repressão da polícia. Embora nunca tenham ferido ou matado alguém, os estudantes jogavam coquetéis Molotov nas viaturas da polícia que revidavam com cassetetes, cavalaria, jatos de água e gás lacrimogêneo.

E o Henfil retratava isso?

Sim, fazendo charges sobre as passeatas, Henfil colocou a população do lado dos estudantes. Eles usavam bodoques (estilingues com bolinhas de gude) contra a polícia. Henfil desenhava aqueles estudantes fraquinhos e serelepes com bodoques e cartazes enfrentando milicos enormes (que ele copiava dos bonecos do Claudius) e a população tomava o partido dos estudantes e, dos prédios, jogava saquinhos de leite ou de água em cima da polícia. Acho que Henfil só conseguiria influir na realidade, dessa maneira, anos depois com os símbolos dos times do Rio.

E isso durou até quando?

Até 1968. Com o AI-5 e a censura prévia isso tudo acabou. Henfil e o jornalista Márcio Rubens levaram a coluna para a edição mineira do JS (Jornal dos Sports), onde finalmente o conheci pessoalmente e por acaso. Eu estudava num colégio estadual e minha colega de sala, Nívia, namorava o Chico Mário, irmão de Henfil w Betinho. Assim, conheci o Chico primeiro. Voltando um ano atrás, em 1967, Ziraldo criou o Cartum JS, suplemento de humor do Jornal dos Sports. O Zira já tinha me publicado no último número do gibi do Pererê, então fui até a redação mandar minhas charges pelo malote aí tive a maior sorte: o editor era o cassado jornalista Euro Arantes do extinto semanário Binômio (*). Ele me adotou e me apresentou a seus antigos colegas (só feras) como Celius, Aulicus, Bley Barbosa e Vander Pirolli. Todos me adotaram. Nessa época eu trabalhava de office boy na Mendes Junior. Um dia entro timidamente na redação e o que vejo? O jornaista Marcio Rubens Prado e perto dele, Henfil desenhando numa mesinha. Quebrei a timidez e me apresentei. Descemos juntos pelo elevador. Henfil estava com uns óculos escuros, parecia o John Cassavetes, ator que fez o thriller O Bebê de Rosemary com Mia Farrow… (*) O provocativo jornal “Binômio: Sombra e Água Fresca” foi criado durante o governo Jusceino Kubistheck pelos jornalistas José Rabelo e Euro Arantes. JK havia lançado o Plano Binômio: Energia e Transporte. “O Binômio da mentira era o de Juscelino. O nosso era o Binômio da verdade”, declarou José Rabelo. O semanário foi publicado entre 1952 e 1964, quando foi fechado pela ditadura militar.

E aí, depois do encontro, do elevador e do óculos escuro tenebroso?

Desse encontro com o Henfil nasceu uma amizade que durou até ele morrer. Nessa coluna no Jornal dos Sports e na revista mensal do Atlético, Henfil criou personagens símbolos dos times mineiros: o Urubu pro Atlético, o Refrigerado pro Cruzeiro e o Gato Pingado pro América. O goleiro Raul bombava no Cruzeiro (nos jogos e fora deles), era a paixão de todas mulheres: lindo, com cabelo loiro e comprido tipo Beatles, não usava preto como todos os goleiros, usava uma camisa amarela. O Cruzeiro estava no auge com Dirceu, Lopes, Piazza, Tostão… e os atleticanos começaram a chamar o Raul de Wanderléa, Refrigerado e outros nomes. Então Henfil pegou um dos nomes desse preconceito (Refrigerado) e batizou o bonequinho do Cruzeiro (meu time), mais tarde se penitenciou disso. Urubu era o nome que os cruzeirenses chamavam torcedor do Atlético. Henfil fez o que sempre fez, pegava uma palavra que era uma ofensa e a revertia… nessa época o bonequinho do Urubu ainda era branco. Devido ao enorme sucesso, o pessoal do Rio chamou o Henfil para fazer a coluna lá e ele levou o Urubu, criou o Bacalhau, o Cri-Cri, recriou o Pó de Arroz e manteve o Gato Pingado para o América. No Rio, o Urubu ficou preto, veio o Caboco Mamador, o Pó de Souza, ele tomou conta da página inteira do Jornal dos Sports e marcou minha vida profundamente, assim como o Amigo da Onça do Péricles (que apesar de todo o sucesso se matou). Nessa época se casou com a Gilda Cosenza, no Rio. A gente de vez em quando se escrevia…

2. Quais eram suas influências no desenho? Qual foi o impacto de ver o desenho do Henfil pela primeira vez?

Minhas maiores influências na época eram Ziraldo, Phil de Lara (pra mim, o melhor desenhista do Pernalonga), Jack Bradbury (desenhista dos estúdios Disney), Carlos Estêvão (pernambucano que morava aqui em BH) e que cheguei a conhecer pessoalmente. Mas o traço e o raciocínio do Henfil eram algo novo, surpreendente, além da consciência aguda ele provocava gargalhadas. Leon Eliachar ganhou um concurso com a seguinte definição: “Humor é a arte de fazer cócegas no raciocínio dos outros”. Pois o humor do Henfil era um tapa na cara dos opressores, mas também na nossa consciência adormecida. Que radicalidade! Que cusparada na cara dos ‘cactus brochas’ que éramos nós, os leitores. Nunca conseguíamos prever o rumo da piada, era sempre uma surpresa a nos arrancar gargalhadas. E o traço? O que era aquilo? Ele chamava de desenho caligráfico… não estava preso ao traço europeu nem a esteticismos. Seu desenho era o essencial… era movimento puro, desenho animado sem ser.

3. E a genialidade das frases, das tiradas, das sacadas?

Nem o Amigo da Onça -que era bem popular- conseguiu ser tão genial. Henfil conseguiu mudar o vocabulário dos leitores, que era bem futebolístico, para um vocabulário de luta de classes. Codecri era Comitê de Defesa do Crioléu. E lançou República Popular de Ramos, Ipanema Beach, os torcedores começaram a fazer o que ele desenhava nas charges. Começaram a levar bandeiras enormes, tambores enormes e urubus para o campo. Era a vida imitando a arte. Na copa da Alemanha um torcedor quis mandar um urubu pelo correio. Não deixaram e perdemos a copa. Ele fazia cada coisa… Henfil passou a coluna do Jornal dos Sports pro Nani (cartunista Ernani Lucas) fazer… O Nani tirou férias e eu o substituí. Na redação me apresentam a presidente do JS… e qual era o nome dela? Cacilda… Cacilda!!!! Um dos palavrões que o Henfil usava no Urubu e no Pasquim. Rachei de rir. Quando morava com o Henfil, um dia lhe perguntei por que ele tinha parado com o Urubu e sua turma, ele me disse que ele teve medo da proporção que a coisa tava tomando e que ver o Médici na torcida no Maracanã foi a gota d’água. Vendo hoje a violência das torcidas organizadas penso que ele estava certo.

4. O que fazia a cabeça desses cartunistas, seus contemporâneos?

Antes do Golpe de 64 a charge não era tão importante. Tinha na revista O Cruzeiro um ótimo caricaturista chamado Appe, ele fazia umas charges mornas, quase ‘chapa-brancas’, retratava o senso comum. O que fazia sucesso mesmo eram os cartuns publicados nas revistas O Cruzeiro e Manchete. Ziraldo, Claudius, Fortuna, Jaguar publicavam na revista Senhor e ilustravam os livros do Stanislaw Ponte Preta. Embora todos cantassem ‘loas’ ao grafista Saul Steinberg (cartunista romeno, radicado nos EUA), todos eram influenciados pelo André François, Chacal. O único que parecia ter meesmo influência do Steinberg era o Millôr Fernandes, que reinava absoluto na O Cruzeiro (acho o Millôr melhor do que o Steinberg, que aliás veio primeiro da Romênia pro Brasil, não conseguiu emprego e foi pros Istazunidos onde virou o papa do cartum e artista plástico. Um simples rabisco dele num guardanapo passou a valer milhares de dólares. Por causa dessa raiz européia se fazia muito cartuns com mordomos, armaduras, ópera, orquestras sinfônicas etc e tal. Já o Péricles (criador do Amigo da Onça, o maior sucesso popular da época) tinha influência do Divito e da escola argentina de cartum. Com o golpe, Millôr foi expulso de O Cruzeiro e resolveu fazer a revista Pif-Paf, que durou 8 números. Antes do Millôr as duas páginas na O Cruzeiro eram ilustradas pelo Péricles. Carlos Estêvão também brilhava com o Doutor Macarra (que virou revista junto com o Pererê) e com seus cartuns na O Cruzeiro. Com o golpe, muita coisa mudou. A revista Pif-Paf não tinha mais cartuns com mordomos e armaduras medievais. Era tudo charge pauleira arrasando com os milicos e os Istazunidos. Henfil veio confirmar essa prevalência da Charge (editorial/noticiosa) sobre o Cartum (de costumes). Nas suas charges as críticas não eram específicas (contra esse ou aquele general ou político) eram amplas e gerais, expressavam uma postura de classe, assim como seus desenhos de operários e estudantes… Vendo Henfil vi a necessidade de ter um traço para os quadrinhos e um traço para charges e cartuns. Antes disso, o chargista não se dedicava muito ao tema futebol. Tinha o Otelo n’O Globo, o Otávio em SP, mas o chargista em geral não se ocupava de Futebol. Já o Henfil sempre dedicou tempo igual para a política e para o futebol e, assim, acabou politizando o futebol. Tenho muita coisa dele, agora, um livro que não consegui até hoje foi a biografia precoce do Chacrinha ilustrada pelo Henfil… ele adorava o jeito Chacrinha de comunicar. O Velho Guerreiro foi desprezado pelos intelectuais e com razão… eu não passo pano para o Chacrinha, acho que ele pisou muito na bola mas Henfil admirava sua penetracao no povão. Ele também adorava no rádio o programa do Adelson Alves, por isso foi fazer o Orelhão e, mais tarde, o Urubu no jornal O Dia.

5. Qual foi a impacto dos Quadrinhos e Charges do Henfil na Imprensa Sindical? E na esquerda?

Nesse tempo não tinha imprensa sindical. Essa mordaça durou até a ditadura Geisel. Para controlar os trabalhadores, desde 1964, os sindicatos sofreram intervenções federais e estavam tomados pelos pelegos nomeados pela Ditadura. Sindicato não fazia nada, não servia pra nada. Em 1976 ou 77 fundamos aqui em BH o CET (Centro de Estudos do Trabalho) e começamos a fazer cartilhas em quadrinhos. Era uma ONG que tinha padres, comunistas, positivistas, sociólogos, filósofos professores, quadrinhistas. Entre os cartunistas éramos eu, Lor, Melado, Ricardo, Berzé, Aroeira. Eu fiz a primeira cartilha contando a história do Primeiro de Maio em Quadrinhos, vejam só. Embora nosso trabalho não fosse clandestino nossa sede foi invadida pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social, criado em 1924 para combater ataques de ordem política e social ao Estado) duas vezes. A primeira aconteceu na calada da noite e a segunda foi oficial e prenderam o Aroeira por 24 horas.

Neste tempo várias oposições sindicais foram sendo formadas em todo o Brasil, fruto do movimento operário que os militares tentaram destruir durante a ditadura e começaram a vencer dirigentes pelegos em eleições sindicais que antes eram fajutas ou nem eram realizadas. O Sindicato dos Petroleiros de Paulínia foi criado livre em 1973. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri em 1977. Mesmo ano em que o Sindicato dos Metalúrgicos de S. Bernardo foi reconquistado pelos trabalhadores. O Sindicato dos Bancários SP, em 1979.

Quando cheguei em SP e fui morar com Henfil, Glauco estava lá e atuavam na Oboré. Era uma agência de comunicação e assessoria de imprensa sindical, fundada em 1978, que produzia material gráfico para vários sindicatos do Brasil sob a liderança do Serjão (jornalista Sérgio Gomes) e com Laerte carregando o piano nos desenhos. Laerte e Henfil fizeram uma cartilha sobre contrato coletivo pro Sindicato dos Metalúrgicos de S. Bernardo. A Oboré era transpartidária ou assim acreditávamos. Mas, em 1979, quando Lula resolveu fundar o PT e não entrar pro Partidão (Partido Comunista Brasileiro) como os comunistas esperavam, começamos a ser hostilizados por eles na Folha de SP e Oboré rachou… Laerte e Serjão se revelaram ligados ao Partidão (em 1985, com a criação de CUT e CGT o racha iria se aprofundar). Eu continuei colaborando por um tempo mas o Henfil se afastou logo. Também ele ‘tava fazendo a página da Isto É, Pasquim, Jornal da República e uma coluna num jornal de Brasília chamada Primo Figueiredo. Eu o convenci a voltar a fazer o Fradim e a escrever o livro “Henfil Na China”, além de tudo isso veio o convite pra fazer um progarama na TV Mulher, ou seja, ele não tinha tempo para mais nada…

6. Acompanhava as entrevistas do Henfil na Imprensa?

No início, Henfil não dava muitas entrevistas, mas com o sucesso do Fradim, da Graúna e, principalmente, com a questão do Betinho e a Luta pela Anistia, ele passou a ser disputado para dar entrevistas… e eu não perdia uma. Lembro, por exemplo, a da revista Playboy, da Marília Gabriela, do Jô Soares e outras, mas as que me marcaram mesmo foram três: um Jornalzinho universitário publicou umas 20 páginas com depoimentos de várias personalidades inclusive de algumas que ele tinha enterrado no Cemitério do Cabôco Mamadô (como Rachel de Queiroz, Elis Regina e mesmo assim falavam bem dele) impresso em mimeógrafo. Nessa entrevista Henfil fala tudo de uma maneira que não seria possível na grande imprensa. A outra entrevista foi pra turma do Pasquim na véspera dele ir para os Iztazunidos. Bom, ele tinha uma vida espartana, de uma coerência incrível com o que ele pregava, isso motivou atritos com a turma do Pasquim, principalmente os mais burgueses. E nessa entrevista os colegas do Pasquim soltaram toda hostilidade contra o Henfil. Ficou tão pesado que acho que eles nem publicaram ou publicaram só uma parte. Só que não contavam com minha astúcia: um dia fuçando na redação do Pasquim achei duas fitas com a tarja “Entrevista com Henfil”. Pensei: Por que não roubá-las?” Roubei-as. Tirei uma cópia e devolvi as fitas ao mesmo lugar. Anos depois, em São Paulo, Henfil estava editando o Diário de Um Cucaracha com as cartas que ele enviou dos Istazunidos (inclusive com duas para mim) e falou da entrevista perdida e eu disse: “Eu tenho a cópia integral!” E está lá no livro. A terceira entrevista imperdível foi a que ele fez com o Teotônio Vilela pro Pasquim e onde cunhou o “Diretas Já”! Ele era genial! Como na charge com Zéferino, Bode Francisco Orelana e a Graúna e a pergunta “Tá vendo alguma esperança?” “TÔ!” E a esperança é a gente que tá vendo a charge!

7. O que achou da iniciativa da Editora Noir em reunir estas entrevistas em um livro? Que efeito acha que este livro terá em você e nos demais leitores?

Tudo que puder lembrar gente como Monteiro Lobato, Barão de Itararé, Mark Twain e Henfil é sagrado. E se esse livro vem pela mão do GONCALO JUNIOR melhor ainda. Eu adorei A Guerra dos Gibis, infelizmente não consegui achar os livros que ele escreveu de ilustradores que fizeram parte da minha infância: Alceu Penna (também mineiro) e Benício…

8. Henfil era um profissional multimídia, atuando na TV e no Cinema. O que achou das produções do cartunista em TV Home e Tanga, deu no New York Times?

Henfil acordava às cinco da manhã para fazer o quadro ‘TV Homem’ na TV Mulher… e era impressionante pois ele não dormia antes da uma da manhã (só assim com o tanto de coisa que estava fazendo). E foi uma revolução na linguagem da TV e na ousadia dentro do TV Mulher que já era um programa ousado pra época. Mas fiquei chateado por que ele chamou todos os amigos para fazer figuração no programa e nunca me chamou. Henfil só fez duas coisas sem graça na vida: uma foi morrer e a outra foi o filme “Tanga deu no NYT”, ele já ‘tava com Aids, saindo de 6 meses no hospital e, na minha visão, o filme não engrenou. Acho que a única cena que deu certo foi uma do Haroldo Costa de padre falando na igreja. O Maurício Maia (filho do publicitário Carlito Maia) e que praticamente morava lá conosco acompanhou a feitura do filme e me contou que o script todo desenhado era hilariante, puro Henfil. Ele chegou a pensar em passar esse storyboard pra linguagem do cinema.

9. Qual é o tamanho da falta que Henfil faz?

Puxa, a falta que o Henfil me faz como amigo… as longas conversas e provocações mútuas! Uma vez ele veio à BH, eu estava publicando os quadrinhos do Negrim do Pastoreio no jornal Estado de Minas (meu maior sucesso). Nos encontramos e ele ficou quase 2 horas analisando cada página apontando cada falha e cada acerto… foi muito importante para mim. A partir daí tive uma evolução importante no meu traço, ele fez isso de uma maneira tão terna e bem humorada. Foi muito importante para minha autoconfiança. Pra confiar em mim e na profissão que escolhi. Henfil era uma lâmpada na terra. Lembrei do poeta Pablo Neruda que falou de Lautaro, o jovem líder indígena mapuche, que enfrentou os espanhóis de Valdivia no Chile e matou o sanguinário comandante espanhol. De Lautaro disseram: “Aquello que es una lámpara en la tierra”. Henfil, bem como Lautaro, como Lobato, como Darcy Ribeiro, como Paulo Freire, como Chico Buarque foram e são lâmpadas nessa terra. Ele tinha uma percepção, uma intuição que beirava o sobrenatural. Ele achava a clareza dos caminhos, principalmente para nós cartunistas, clareava esses caminhos e partia pra ação…

Ele partia pra ação direta?

Sim, Henfil agia. Num processo de organização grevista conheci Lula e outros sindicalistas como Arnaldo Gonçalves (Metalúrgicos de Santos), o Joaquinzão (pelego do Sindicato dos Metalúrgicos de SP), o Alemão, o Osmarzinho numa reunião sobre a estratégia para a greve. Henfil sugeriu que fizessem greve entrando nas fábricas, ocupando, ficando lá dentro sem mexer uma palha. Ao contrário dos piquetes e enfrentamento com a polícia violenta, que era sempre arriscado. Fizeram isso anos depois e deu muito certo. Greve por dentro! Me lembro da Elis Regina trazendo a renda do show de Primeiro de Maio no Rio e entregando pro Henfil para ele repassar pro Fundo de Greve dos Metalúrgicos. E não era só isso. Me lembro da mulher do Theodomiro, um guerrilheiro que cumpria pena na Bahia, ela estava apavorada. Ao ser preso, atirou acidentalmente num soldado e os seus carcereiros prometeram que eles iam matá-lo antes que recebesse a anistia, que estava para sair. Henfil conversou com ela e lhe deu dinheiro para ajudar na fuga do marido. Isso tudo era muito arriscado, ainda era o general Figueiredo no poder… Ahhh, o Theodomiro escapou, tem até um documentário sobre isso! Um dia fomos ao presídio Carandiru levados pela Ruth Escobar pra assistir uma peça feita pelas presas. Elas eram do grupo de teatro que a Ruth tinha criado lá dentro. Henfil ficou apaixonado com o grupo e principalmente com uma atriz do elenco, linda, enorme, negra. Assistimos tudo atrás das grades, conversamos com elas… ele participava de tudo ativamente.

O que ele faria hoje, aqui no Brasil?

Henfil crescia sob a pressão. Ele dizia ter nascido para ser piloto de provas de fábrica de supositório. Frente a qualquer situação dramática que abateria qualquer um, ele crescia, virava fera… coisa da hemofilia talvez! Acho que estaríamos menos ignorantes sobre o que fazer se ele estivesse aqui nos ajudando a decifrar esse pesadelo. Acho que daria um braço pra saber o que o Henfil diria sobre o que estamos vivendo no Brasi.

10. O livro organizado pelo Gonçalo Jr, com campanha no Catarse pela Editora Noir, pode ajudar a melhorar isso?

Goncalo Junior escreveu o melhor livro sobre quadrinhos e jornalismo do Brasil: A Guerra dos Gibis. Ele me pediu orientações, dicas, seguiu todas e arrasou. Como disse na resposta 7, onde ele bota a mão é excelência na certa. Um dos melhores jornalistas que os Quadrinhos já viram!

O humor sempre teve um lado sarcástico e irônico, muitas vezes politicamente incorreto, mas tem um setor de humoristas que resolveu explorar o preconceito de forma descarada. O que acha disso?

A pior praga que aconteceu no humor brasileiro foram os Cassetas e Picaretas, depois do TV Pirata. Eles fizeram andar pra trás tudo de bom que o Pasquim tinha feito pra avançar no humor brasileiro. Não foi por acaso a ascensão meteórica da gangue que contaminaria até mesmo a linguagem publicitária, culminando nessa farsa cometida com a cumplicidade do Nelson Mota chamada ‘Simonal ninguém sabe o dedo duro que fui’. Ali começou a falsificação da história recente que deu nos Pondés, Lobões, Danilos Gentili, Marcelos Tas, CQCs da vida, surfando na onda politicamente incorreta e finalmente na ignorância autocultivada e falsificação dos fatos feitas pela horda bolsonarista.

11. O Brasil hoje está ‘sick da vida’ com tantos ataques à democracia, à inclusão social, racial e de gênero, à distribuição de renda? Ou a coisa precisa piorar mais pro povo reagir?

Guimarães Rosa dizia que o sapo não pula por boniteza porém por precisão. Precisão no sentido de necessidade. Diz o ditado: “sapo apertado é que pula”. Estamos num situação em que é difícil atacar. Conseguimos, com muito esforço, resistir para estarmos vivos pra quando a maré mudar… talvez haja um dia marcado pra gota d’água acontecer. Como dizia o Millôr: “Estamos cercados não deixem o inimigo escapar.” Darcy Ribeiro estava asilado em Cuba durante o ataque norte-americano à Baía dos Porcos… antes do ataque ele perguntou a uma menina negra franzina com uma arma na mão: “O que você vai poder fazer quando chegarem aqueles marines gigantescos armados até os dentes?” Ela olhou pra ele e respondeu: “Não sei… só sei que o meu, eu esgano!”

12. Como foi quando a emenda ‘Diretas Já’ do deputado Dante Oliveira estava pra ser derrotada no Congresso Nacional?

Diretas Já… tinha uma reunião aqui em BH convocada pelo Ziraldo com todos os cartunistas para apoiarem o Tancredo Neves (via Colégio Eleitoral) pra fazer campanha e tal. Ao chegar no local dou de cara com o Henfil e a Lucinha, sua mulher. E ele puto com o Ziraldo, virou para mim me provocando e perguntou se eu também tinha aderido. Eu disse que não sabia o que estava havendo, mas se ele era contra eu tava com ele. Não fui na reunião. Antes de fazer o filme ‘Tanga’ ele veio aqui em BH e fui encontrarcom ele. Henfil já sabia que estava com Aids mas não me falou nada… Junto com jornalistas do Diário de Minas (o jornal onde ele tinha começado a carreira) fizemos uma de suas últimas entrevistas. Nesta conversa enorme ele diz que o Tancredo era uma libélula e que o PT era a nave mãe de onde sairiam outros partidos mais aguerridos. Sua posição que lhe custou o emprego na Isto É. Foi demitido por um cara que ele tinha ajudado quando exilado. Sua posição era que o povo não devia sair das ruas, devia fazer como o povo português na Revolução dos Cravos: ficar nas ruas até conseguir as Eleições Diretas pra Presidente de República.

13. Henfil foi um dos fundadores do PT, que se propunha a transformar radicalmente a sociedade. Esta décima terceira pergunta é o espaço pra suas considerações, não finais, mas futuristas. É possível ainda transformar o país de forma radical? O humor entra nisso?

Sou fundador e filiado ao PT. Acho que o Henfil nunca se filiou oficialmente. Mas na fundação, estávamos lá com gente como Mário Pedrosa, Sérgio Buarque de Hollanda, Apolônio de Carvalho, Gonzaguinha e tanta gente da melhor estirpe. Anos depois, o discurso que LUla fez logo após sair o resultado das urnas… Lula falou dos três irmãos de sangue (Betinho, Henfil e Chico Mário, os três hemofílicos, os três foram infectados pelo vírus da AIDS em transfusão de sangue) a começar por Henfil…chorei de me acabar, abri o bué… Os vira-casacas tipo Arnaldo Jabor, Nelson Motta, Fernando Gabeira não vão gostar da gente fuçar lembrando do Henfil. Tão logo acabou a Ditadura eles se sentiram livres para aceitar umas sinecuras na Globo ou na Folha e quando Henfil lhes cobrou um mínimo de coerência o Cacá Diegues criou o termo ‘Patrulhas Ideológicas’ para provocar e xingar o Henfil. Imagino o que o Cabôco Mamadô estaria fazendo hoje com os Raimundos Fagner, Elbas Ramalho, Toquinhos, Zezés de Camargo, Marcelos Madureira, com a família Bozo e com os bolsominions… Ia ser uma festa no Cemitério dos Mortos Vivos. Pode ser que hoje eu seja só um velhinho revoltado, mas dentro do meu coração eu repito comigo mesmo: “REVOLUÇÃO CONTINUO TE QUERENDO!”

NILSON AZEVEDO

Membro da Revista Pirralha. Cartunista, chargista e quadrinhista nasceu em 1949 na vizinha cidade de Raul Soares. Em 1967 estreou no Cartum JS. Criou as HQs Negrim e A Caravela (quadrinhos sobre as Grandes Navegações do ponto de vista dos marinheiros). Em sua incansável “guerrilha do traço”, ele publicou charges e cartuns no Pasquim e em alguns dos principais jornais do país, além de ser um dos criadores do Humordaz e companheiro de Henfil na luta contra a Ditadura. Colaborou intensamente em jornais alternativos e com oito colegas formou o “Humordaz” que foi fechado pela censura. Desde 1978 tem se dedicado a educação popular, realizando cartilhas, gibis e audio-visuais. Ganhou em 1989 o concurso de cartum do Salão Carioca de Humor e em 1990 concurso do Piauí.

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