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AQC ENTREVISTA: BETANIA DANTAS SOBRE HENFIL

1. Como você conheceu Henfil?

Conheci os trabalhos de Henfil ainda pequena quando vi a efervescência dos movimentos em São Paulo pois meus irmãos viviam tudo isso. Aos 15 anos li Henfil na China antes da coca-cola e Diário de um Cucaracha, Cartas da mãe publicada pela Istoé, Hiroshima, Meu humor e os seus cartuns. Fiz murais com a Graúna e morria de rir com o analfabeto bode orellana que tudo sabia das notícias depois de comer o jornal.

2. O que mais te impressionou?

Fiquei impressionada com a crítica de Henfil sem nunca perder a ternura. Seu desenho era quase uma caligrafia. Queria entender Graúna: era ingênua ou lutadora? Ou as duas coisas? Era feminista. Que raiva de Zeferino, representante de tantos homens machistas! Mas é o antagonista que precisa existir nas criações artísticas e literárias até que o povo brasileiro repudie de uma vez por todas qualquer atitude opressora. Sobre o texto no jornal Henfil era amoroso e de repente queria explodir, aí vinha o humor. Uma mescla de revolta, denúncia e acalanto. Sentia uma amorosidade do texto Miguilim de Guimarães Rosa. É um amorosidade mineira que só quem os conhece sabe da fala ritmada.

3. O que chamou mais atenção?

Tudo chamava a atenção: humor escrito, gags visuais e traço. Eram três recursos que se apoiavam, tudo estava no lugar certo, o texto se mesclava as gags e ao traço. Era a palavra certa que batida na cabeça do Zeferino gerava gag com a linha toda estremecida e a fala. Unidade era a palavra certa.

4. Em que ele te influenciou?

As ideias políticas de empoderamento vêm dele. Era o sindicato, as pastorais e Henfil que conseguiam falar de perto, com muita facilidade. Com Cartas da mãe ele mostrou como é possível falar de coisas complexas em uma conversa simples. Graúna influenciou o nascimento de muitos personagens, ela era a primeira que eu desenhava em aula com a sua linda frase: tô vendo uma esperança! Contava sobre cada personagem, isso dá uma potência de criação aos alunos. Fazíamos personagens que nasciam de números, letras, escritas… traçava o perfil de cada um. Inspirar-se em seus personagens para criar outros. Sinto por não conseguirmos dividir a memória daquele momento, foi tudo muito lindo e forte, mas a atual geração não viveu e isso tem um impacto. Com toda a falta de materiais multiplicava o que tinha. Foi só ele que trouxe com leveza a beleza das pinturas chinesas sem moldura e como mudaram para sempre o seu modo de fazer quadrinhos xingando a maldita tradição norte americana das grades. Foi por Henfil que descobri o branco na arte chinesa e em seu trabalho.

5. Qual foi a impacto dos Quadrinhos e Charges do Henfil na Imprensa Sindical?

O trabalho de Henfil ajudou no fortalecimento da comunicação da imprensa sindical, enfrentando o regime militar e esperançando a liberdade de nosso país. Essa linguagem rápida, bem-feita e muito próxima do leitor não é fácil de ser encontrada. Pensar em uma arte que inclua todos é de uma amorosidade de que fala Paulo Freire e isso Henfil tinha. Ele revoluciona ao ter imagens que pedem um leitor mais participante ao criar os espaços não determinados por linha de chão. Conversar sobre as produções de Henfil entre os amigos e as amigas era sempre uma festa. Seus leitores tinham os credos mais diversos. A minha família ia para as manifestações com cartazes de seus personagens. Sua linha impactou as artes gráficas assim como foi Vkhutemas para o mundo.

6. Acompanhava as entrevistas do Henfil na Imprensa?

Li e assisti algumas entrevistas. Ouvi-lo era sempre um aprendizado porque há ensinamentos, ele não tinha uma fala repetitiva, havia uma construção que você não sabia o que viria e isso é novo, havia criatividade até em sua fala. Mas o que me marcou foi a sua entrevista sobre como se faz humor político.

7. O que achou da iniciativa da Editora Noir em reunir estas entrevistas em um livro?

O Henfil era muito inteligente, aprendíamos novos conhecimentos em cada entrevista pois ele falava tão claramente que alfabetizava qualquer um sobre, por exemplo, a estrutura da comunicação no Brasil. A publicação da editora Noir sobre suas entrevistas é memorial. O Henfil fazia sínteses precisas. Eu realizei uma pesquisa sobre o desenho de humor na escola e Henfil não poderia faltar em meus estudos. Foi muito bom reler seus livros décadas depois.

8. O que achava de Henfil como profissional multimídia, atuando na TV e no Cinema?

Um artista múltiplo. Subia naquela escadinha… era irreverente.

9. Qual é o tamanho da falta que Henfil faz?

Henfil é insubstituível, se fosse verdade que as pessoas são substituíveis, ora, não estaríamos nesta ausência de mentes criativas e protagonistas. Ele morreu como muitos quadros que tanto faltam ao Brasil. Morreu com uma cidade de luta e politização, das pastorais, dos sindicatos organizados e combativos, na crença na alfabetização política dos trabalhadores, todas essas ausências é o tamanho de sua falta.

10. As novas gerações conhecem pouco do trabalho do Henfil. Apesar de uma exposição de originais no Centro Cultural Banco do Brasil (2005) no Rio e em SP ter tido público recorde na época, o trabalho dele ainda é pouco compartilhado nas redes. O livro organizado pelo Gonçalo Jr pode ajudar?

Todos os esforços de publicação são importantes como a do Gonçalo Jr. Eu não quero entender essa lógica das redes sociais e não uso, mas acho que os trabalhadores que vivem do trabalho, jovens ou mais velhos, estão se deixando levar pelos algoritmos. Em 2006 as escolas públicas receberam livros de qualidade inclusive os de Henfil, fazer chegar esses livros é revolucionar. A Graúna e sua turma precisam estar nos livros didáticos (acho que deve sempre aparecer no livro de História), no Enem, nos concursos, na TV. Henfil é cultura brasileira.

11. O Brasil hoje está ‘sick da vida’ com tantos ataques à democracia, à inclusão social, racial e de gênero, à distribuição de renda?

São Paulo teve um movimento lindo que eu conheci pequeninha, ao chegar do Rio, e eu tenho saudade, uma parte dos que se foram levaram a práxis com eles. Fui leitora de Paulo Freire com 15 anos de idade graças a minha professora de Sociologia dos anos 80, vi o movimento operário de perto, estive nos sindicatos desde pequena, com 10 anos de idade nas greves meus irmãos me jogavam debaixo dos carros pra não aspirar bomba de gás lacrimogênio, vi partido orgânico se constituir, o movimento era de classe trabalhadora, essa organicidade se esvaiu. O que ocorreu? A pasteurização? Os discursos repetidos e desapaixonados? O desencantamento? A falta de identificação? Pode ser tudo isso. O povo era guiado pelas pastorais, eram experiências fortes, esperança transformadora e agora?

12. Como Henfil estaria reagindo à sanha fascista, totalitária e anti-democrática que abocanhou os três poderes?

A essa sanha fascista Henfil faria a diferença. O Brasil ficou muito estranho desde 2013. A direita se planejou com todos os seus golpes e a esquerda estava dividida. Essa divisão deu espaço para a articulação de grupos que ganhariam com as privatizações e o desmantelamento da previdência, a retirada das políticas públicas. Henfil veria isso com muita clareza. Acredito que ele faria as críticas “doa a quem doer” e tentaria repensar o que a realidade está nos impondo no séc. XXI. Continuaria com a sua máxima e sem conchavos: “O verdadeiro humor dá um soco no fígado de quem oprime”.

13. Henfil se propunha a transformar radicalmente a sociedade. Esta décima terceira pergunta é o espaço pra suas considerações, não finais, mas futuristas. É possível ainda transformar o país de forma radical? O humor entra nisso?

Em minhas considerações não finais penso que a via política parlamentar é cruel: por um lado uma parte da esquerda se esfacela para garantir que parte das famílias trabalhadoras saiam da fome, tenham formação para que isso gere emprego. Mas o espaço político-partidário é cruel, a lumpemburguesia e seus representantes canalhas perseguem, armam mentiras. O humor é a capacidade de rirmos de nós mesmos e corrigirmos o que não é humano. A radicalidade que Henfil acreditava foi muito desestruturada com adequações ao governo burguês. As instituições brasileiras são raposas velhas e engendram suas articulações de manutenção do poder. A esquerda precisa reelaborar o projeto de acolhimento humanitário. A burguesia é a sombra do nosso país e ela não dorme, vai em Davos e planeja a sua revida na base da morte daqueles que vivem do trabalho, a classe dominante tem auxílio da CIA, é uma classe que não se importa com a fome de seu país. Atualmente se desconhece CLT, regras trabalhistas, sindicatos e ações coletivas. Só quando os desempregados brasileiros tiverem que lutar para a sua melhoria é que lutarão quando retirarem esses direitos, estarão de pé para lutar contra a perda de direitos. Tudo precisa ser mais trabalhado, cada pessoa beneficiada precisa saber o caminho que levou uma política pública para chegar até ela. Precisamos do horizontal sem líderes como falava Henfil. No séc. XXI acompanhamos os pequenos movimentos, sozinhos, faltando muita gente e acho que não temos mais os movimentos orgânicos do séc. XX porque eram construídos pela classe trabalhadora, pelas pastorais e por partido que nascia desse movimento. Então nesse contexto atual temos a desindustrialização, o surgimento da lumpemburguesia (“empresários” sem empresa) que vivem de investimento (tiram sua rentabilidade de nossa aposentadoria), se aliam a juízes corruptos treinados na CIA para retirar o bem social e aplicar a verba em rentabilidade.

CONTATO COM BETANIA DANTAS

betaniadantas@hotmail.com

Betania Dantas é professora e escreveu sobre arte, educação, liberdade, história e memória. Há algumas décadas participa de ações coletivas e libertárias que apoiem os movimentos de libertação dos trabalhadores e dos povos.

https://www.unifesp.br/campus/gua/docentes-educacao/369-betania-libanio-dantas-de-araujo

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