1. Como você conheceu o trabalho do Henfil?
Venho de uma família pobre que não tinha muita leitura. Minhas irmãs, que trabalhavam na Prefeitura Municipal, traziam livros pra mim. Eram obras que sobravam das bibliotecas. Uma das irmãs começou a namorar um rapaz que morava numa grande cidade e um dia ele me mostrou a revista Fradim, que já era no formato horizontal, atípico nas revistas alternativas da época. Devo alertar que os dois primeiros números do Fradim foram no formato tablóide. A partir disso eu pedia a ele -sempre- que me trouxesse novos números, até que comecei a viajar pra grandes cidades e passei a comprar eu mesmo os números atrasados. No começo dos anos 1980 eu já sabia da existência da Imprensa Alternativa, acompanhava tudo desde 1976, mas não conseguia comprar porque não tinha um bom emprego. Quando comecei a trabalhar numa fábrica de cimento, um engenheiro da empresa me passava todos os Pasquins que comprava, ele lia e depois me dava de presente. Fiz uma amizade grande com este sujeito, chamado Antonio Carlos. Nesta altura, por causa do Fradim, que noticiava tudo que acontecia nas Imprensa Alternativa, já estava por dentro de tudo se publicava de importante.Na revista do Fradim havia de tudo; cartuns, quadrinhos cartas, textos do Henfil, de modo que a partir do pensamento dele começou a surgir em mim um pensamento político, que inclusive me levou a entrar para o Partido dos Trabalhadores. Me lembro perfeitamente de ter comprado no partido algumas cartilhas feitas por ele, uma delas era justamente informações sobre que era política. Na época eu acompanhava o Henfil pela sua revista como também pelo Pasquim. Seus livros ainda não tinham saído, demorou para aparecer o Henfil na China e o Cartas da Mãe. Seu primeiro “Hiroshima meu humor”, publicado ainda em Minas, anos 1960, na época era uma raridade, não havia como obter a edição original. Fui adquirir este livro só no final dos anos 1980, num sebo. Depois fizeram uma reedição. Um livro do Henfil que também foi importante no meu crescimento intelectual e político foi “Diário de um Cucaracha”. Na verdade o germe deste livro está na própria revista do Fradim, pois nela Henfil discutia tudo, até da própria profissão. Ou seja, Henfil na sua revista tentava organizar a esquerda, e a mim organizou o pensamento e me formou como um cidadão. Dali em diante passei a acompanhar as entrevistas dele, onde brilhava com idéias novas e muito próprias, pra não dizer atrevidas. Suas entrevistas me levaram a colecionar entrevistas de outras pessoas, tenho hoje um arquivo enorme, em casa, dos mais diversos artistas e intelectuais. Uma papelada bem grande, pois na era gutembergueana eram os impressos que aprofundavam as idéias… Acabo de saber que a Folha de São Paulo não mais circula em papel…
2. Qual foi o impacto inicial?
O impacto da obra e do pensamento de Henfil foi enorme. Naquele momento (metade dos anos 1970), eu não tinha formação intelectual alguma. Pelos seus desenhos, suas idéias, pude começar a compreender o mundo. E aí fui para a literatura, cinema e pela cultura de uma maneira geral.
3. O que chamou mais atenção o humor escrito, as gags visuais ou o traço?
No caso do Henfil foi um combo, tudo que ele falava e criava eram novas para mim.O desenho e a forma de diagramar as idéias, a maneira de se utilizar dos mais diversos meios de comunicação. O traço então nem se fala, um desenho que não terminava, … Eu gosto muito da tipologia também do Henfil, muito própria, suas letras são lindas.
4. Seu trabalho teve influência direta em você?
Não sou cartunista mas jornalista, digamos que o lado jornalista de Henfil também me tocou, aprendi também a conhecer a Imprensa pelos seus olhos.Nas suas revistas e nos seus depoimentos, ele divulgava tudo que havia de interessante, dava dicas de leituras de jornais, gibis, revistas e livros.
5. Qual foi a impacto dos Quadrinhos e Charges do Henfil na Imprensa Sindical? E na esquerda? E entre seus amigos? Quais eram os comentários das pessoas?
Pelo que li sobre o assunto, o impacto de Henfil sobre a Imprensa Sindical foi enorme, acredito que os desenhos de humor que começaram a aparecer nestas publicações sofreram e sofrem influencia direta dele, não conheço como eram antes da era em que ele apareceu mas o depois é flagrante até no traço dos artistas.
6. Acompanhava as entrevistas do Henfil na Imprensa? O que achou da iniciativa da Editora Noir em reunir estas entrevistas em um livro? Que efeito acha que este livro terá em você e nos demais leitores?
Reunir o pensamento político e artístico de Henfil é mais que importante, é necessário. Num momento em que a mídia imprensa está declinando acho que é imperativo mostrar que ela já foi mais profunda, acredito que se Henfil fosse vivo e tivesse falando suas verdades não teria mais espaço na grande imprensa. Não interessa mais para esta chamada Grande Imprensa ouvir o Henfil organizar a política e a cabeça das pessoas, porque ele fazia isto,organizava as idéias. A maioria das entrevistas de Henfil que possuo foram da grande imprensa, excetuando uma ou outra da Imprensa Nanica, o que prova o quanto ela já foi melhor. Henfil também deu boas entrevistas para TV, como por exemplo ao programa Vox Populi, e deve estar no youtube na integra. Rever a inteligência e a ética dele em forma de livro acho valoroso, afinal a nova geração mal sabe quem foi Henfil. Tenho que confessar que foi uma idéia que tive há muitos anos, quando comecei a colecionar também estes depoimentos,e fico feliz que esteja sendo realizado agora de uma forma tão profissional.
7. O que achou do Henfil na telinha e na telona? Pra você, qual é o tamanho da falta que Henfil faz?
Sim, Henfil não tinha limites, como todo artista e intelectual de peso , era capaz de fazer uso dos mais variados suportes. No caso da TV Homem, um quadro que fazia parte da TV Mulher, na Globo, foi feito quando estava no auge da sua criatividade. Seus quadros são históricos,fazem parte da história do humor na Tv brasileira. Acho que apenas a TV Pirata, Juarez Machado e o quadro do Glauber no programa Abertura ombreiam com este trabalho dele. Eu trabalhava e na época não tinha VHS para gravar, de modo que acompanhei o programa uma vez ou outra, o que foi uma pena. Será que alguém compilou todos os quadros e fez um DVD? Mas o que vi achei fantástico, uma inovação no humor da TV, que era muito ligado no humor radiofônico, e Henfil como Juarez Machado por exemplo modernizaram a linguagem. Quanto ao filme do Henfil, acho que não deu muito certo, ele não estava bem de saúde, não conseguiu fazer um grande filme, foi na fase final de sua vida. Estava visivelmente envelhecido, falo naturalmente no físico não na criação. Não lembro bem mas acho que já estava infectado pela Aids.
8. O trabalho de Henfil é pouco compartilhado nas redes. O livro organizado pelo Gonçalo Jr pode melhorar isso?
Acho que sim, trazer o pensamento de Henfil para hoje, num país mergulhado numa crise sem precedentes, só pode ajudar a esclarecer as coisas. É um pensamento límpido, direto, sem frescuras, vai ajudar sim as pessoas a compreenderem o que estamos vivendo. Henfil tinha lado, junto ao povo..
9. O Brasil hoje está ‘sick da vida’ com tantos ataques à democracia, à inclusão social, racial e de gênero, à distribuição de renda? Ou a coisa precisa piorar mais pro povo reagir?
O povo não reage porque não tem emprego e quem tem não se mexe porque tem medo de perdê-lo. Esta é a nossa tragédia. Não sei se é possível piorar mais, não sei, acho que não temos mais Imprensa, a grande Imprensa mente, pior ainda que as chamadas fake news, e no tempo de Henfil ele tinha até um relativo espaço nessa grande mídia. Hoje não teria mais. O capital se apossou da Imprensa, hoje quem edita um jornal é o próprio capital. O povo não consegue se informar. Mudou a imprensa, o pensamento de Henfil circulava também pela grande mídia, hoje seria impossível.
10. Como Henfil estaria reagindo à sanha fascista, totalitária e anti-democrática que abocanhou os três poderes?
Acho que Henfil estaria nas trincheiras democráticas, não acredito que seria um anarquista. Acredito que estaria organizando a esquerda, que está sob ataque. Será que estaria em busca de um novo Teotônio Villela?
11. Henfil foi um dos fundadores do PT, que se propunha a transformar radicalmente a sociedade. Esta décima terceira pergunta é o espaço pra suas considerações, não finais, mas futuristas. É possível ainda transformar o país de forma radical?
Como transformar um país tão desigual, sem sangue ou revoluções? Nossa elite deu mostras de que não cederá nem um centímetro, resta a esperança que um dia o povo caia em si e dê a volta por cima. O partido que Henfil ajudou a fundar continua na crista da onda, e tudo leva a crer que é o único capaz de enfrentar a direita, a ultra direita e este projeto anti Brasil.
JOÃO ANTONIO BUHRER DE ALMEIDA
É jornalista e pesquisador de Caricaturas e Histórias em Quadrinhos. Foi um dos primeiros blogueiros a explorar o mundo dos discos, livros e quadrinhos (Grapholalia). Através de seus “Arquivos Incríveis” tem compartilhado jornais, revistas e publicações de arte e quadrinhos por email e pelo facebook. Organizou várias exposições no CCLA (Centro de Cultura Letras e Artes de Campinas). Tem roteiros de HQs desenhados por Bira Dantas. Nasceu em Itapeva (SP), onde viveu até 1984, quando se mudou pra Campinas pra estudar jornalismo. Trabalhou como bancário e se aposentou como tal. Como jornalista atuou como pesquisador na edição em livro da “Senhor, uma Senhora Revista”, organizada por Ruy Castro.
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