Esta série de entrevistas é uma iniciativa da AQC em apoio ao livro “Sick da Vida”, coletânea de entrevistas do cartunista Henfil organizadas pelo quadrinhista, jornalista, escritor e biógrafo Gonçalo Silva Jr. O livro foi lançado na plataforma Catarse pela Editora Noir. Por isso, pedimos que você apoie, compartilhe e comente. https://www.catarse.me/henfil
1. Como você conheceu o trabalho do Henfil?
Foi pelos anos 1974 ou 75. Eu estava terminando o Colegial (hoje Ensino Médio – acho) ou começando a faculdade de Psicologia, e sempre que dava ia ao Centro velho de SP em busca de novidades: a MAD americana, as primeiras revistas de informática, Pasquim… Conheci o trabalho do Henfil primeiro no Pasquim, depois as revistas. E ainda tenho vários exemplares!
2. Qual foi o impacto inicial?
O que mais me chamou a atenção foi o traço, tão rápido, tão urgente, como se o tempo fosse pouco, e cada vez menor, para colocar o que pensava, via e sentia no papel. Impossível não sentir a urgência no e do traço.
3. O que chamou mais atenção: o humor escrito, as gags visuais ou o traço?
Principalmente o traço, mas em segundo lugar pertíssimo foi a percepção do mundo ao redor. Até hoje lembro de duas situações: a Graúna e o Bode Orelana caçando corruptos com uma visão bem seletiva de corrupção, e o Fradinho Baixinho sem entender a relação do Cumprido com a mãe, que era diametralmente oposta à que ele vivia.
4. Seu trabalho teve influência direta? Se teve, em que sentido?
Acho que me deixou mais atenta ao mundo e suas diferenças? E mais atenta ainda a mim, para respeitá-las. E, num outro nível, atenta às desigualdades. Embora não ganhe parcelas do orçamento secreto, estou sempre apoiando causas com as quais me identifico. Uma das minhas preferidas é o Pimp my Carroça.
5. Qual foi a impacto dos Quadrinhos e Charges do Henfil na Imprensa Sindical?
Sobre esse impacto eu sou totalmente Glórias Pires: não tenho condições de opinar. Mas acho que pelo menos um ou dois colegas de faculdade começaram a ler Pasquim e Henfil por minha causa. Até onde lembro, era a única a ter e ler essas publicações por lá.
6. Acompanhava as entrevistas do Henfil na Imprensa?
Essa eu vou ficar devendo. Lembro pouquíssimo das entrevistas do Henfil, uns flashes de quando o irmão dele (Betinho) voltou do exílio.
7. O que achou da iniciativa da Editora Noir em reunir estas entrevistas em um livro? Que efeito acha que este livro terá em você e nos demais leitores?
Amei a iniciativa, tanto que contribuí no Catarse. Em mim o efeito será de descoberta pois, como respondi acima, quase não acompanhei as entrevistas dele. E, para as novas gerações, será a oportunidade de conhecer alguém que pensava muito além de caixinhas e da sua época.
8. Henfil era um profissional multimídia, atuando na TV e no Cinema. O que achou das produções do cartunista em TV Homem e Tanga, deu no New York Times?
Eu assistia TV Homem sempre que possível, e gostava da maneira como ele provocava as pessoas a pensarem além do óbvio. Mas não assisti Tanga.
9. Pra você, qual é o tamanho da falta que Henfil faz?
Neste deserto em que querem nos transformar, ele faz uma falta imensa. Pensar e provocar está cada vez mais raro aqui.
10. As novas gerações conhecem pouco do trabalho do Henfil e ainda é pouco compartilhado nas redes. O que fazer pra melhorar isso? O livro organizado pelo Gonçalo Jr pode ajudar?
O livro pode ajudar, desde que divulgado de modo a atrair essa moçada. Investir o máximo possível nas redes que eles mais usam, tipo TikTok, de maneira tão anárquica quanto o próprio Henfil, deve ajudar.
11. O Brasil hoje está ‘sick da vida’ com tantos ataques à democracia, à inclusão social, racial e de gênero, à distribuição de renda? Ou a coisa precisa piorar mais pro povo reagir?
Está sick, está puto, está farto… ou sou somente eu? Ou a prioridade máxima, colocar alguma coisa, qualquer coisa, no prato da família está deixando a reação no final da fila? Sinceramente, não sei o que ou como responder.
12. Como Henfil estaria reagindo à sanha fascista, totalitária e anti-democrática que abocanhou os três poderes?
Estaria usando seu talento monstro para denunciar, apontar, ridicularizar. E certamente estaria colecionando processinhos baseados na (ainda bem!) falecida LSN movidos pelos capachos daquele um que obraram no Planalto.
13. Henfil foi um dos fundadores do PT, que se propunha a transformar radicalmente a sociedade. Esta décima terceira pergunta é o espaço pra suas considerações, não finais, mas futuristas. É possível ainda transformar o país de forma radical? O humor entra nisso?
Do meu lado do balcão, de simples consumidora apaixonada de artes gráficas, humor é termômetro da época em que é feito, e pode ser um registro claro, crítico e apaixonado do que se vive e do que se vê que pode alimentar nas pessoas o desejo de mudança. Mas o humor como “guia” de mudança eu acho mais complicado. Já temos líderes, salvadores, pais e mães da pátria demais, todos vendo as pessoas como criancinhas incompetentes que precisam ser levadas pela mão até a verdade redentora. Prefiro uma arte instigante, que faça pensar, que abale certezas, ao invés de uma que mostre um único caminho que é verdadeiro apenas para quem o indica.
CONTATO COM MARIA LUIZA NERY
mlnery@uol.com.br
Psicóloga que também tem graduação em Música porque tinha uns planos que mudaram depois. Tem mestrado em Saúde Pública, mas não fez doutorado porque bateu de frente com a orientadora. Foi psicóloga no hoje HFASP (Hospital de Força Aérea da Aeronáutica de São Paulo) desde uns anos depois de se formar até 2012, quando foi para a reserva, e desde então trabalha como tradutora. Sempre foi apaixonada por aprender, estudar e descobrir, e pretende continuar aprendendo, estudando e descobrindo pelos próximos milênios. Sobre a Aeronáutica, esqueçam os estereótipos; durante aqueles anos desenvolvi com as outras psicólogas (grandes amigas até hoje) vários projetos e trabalhos que nem de longe envolveram pintar árvores e guias de calçada mas que, dentre outros resultados práticos e diretos, inclusive para não militares, ofereceram chances reais de crescimento aos recrutas que, eles sim, estavam sempre retocando a pintura debaixo do sol quente.