Esta série de entrevistas é uma iniciativa da AQC em apoio ao livro “Sick da Vida”, coletânea de entrevistas do cartunista Henfil organizadas pelo quadrinhista, jornalista, escritor e biógrafo Gonçalo Silva Jr. O livro foi lançado na plataforma Catarse pela Editora Noir. Por isso, pedimos que você apoie, compartilhe e comente. https://www.catarse.me/henfil
1. Como você conheceu o trabalho do Henfil?
Eu comecei a ter contato com o trabalho do Henfil nas primeiras edições do jornal O Pasquim. Entrei na USP em 1969, não lembro direito quando o Pasquim foi fundado, só sei que era distribuído nos centros acadêmicos da USP quase escondido, como se fosse um panfleto proibido com aquela diagramação… e aí comecei a conhecer o Henfil. Na realidade conheci o Henfil, o Jaguar, o Ziraldo era um pouco mais conhecido; mais as coisas do Ziraldo, do Zélio e da Ciça. Tinha o Fradão e o Fradinho (Comprido e Baixim), então aqueles personagens do Henfil. Já começava a falar da ditadura, ilustrava aquelas enormes entrevistas do Pasquim. Lógico que eu sabia que ele irmão do Betinho e andavam militando em Santo André, na clandestinidade. Eu sabia que eram mineiros e comecei a ler tudo sobre o Henfil e me impressionou muito. Na nossa escola nós recortávamos o Pasquim para fazer mural, jornalzinho, era muito interessante.
2. Qual foi o impacto inicial?
O impacto inicial foi muito forte, porque era toda uma linguagem, uma estética nova e tinha aquele negócio do sadismo, do top top, da introdução do palavrão, era uma revolução. Cada um tinha um estilo, mas o Henfil era o mais revolucionário, mais impressionante, aquele traço fino parecia coisa do Picasso.
3. O que chamou mais atenção o humor escrito, as gags visuais ou o traço?
A terceira pergunta é mais ou menos isso, as tags visuais, o conceito, o conceito do exagero, do cara “se foder”, do “cara se estrepar”, não tinha dó, era o escárnio, um afrontamento direto à ditadura e aos militares, as coisas absurdas, depois a introdução à Leila Diniz, do nu, do palavrão, a denúncia do tropicalismo, do exílio, dos novos baianos, começou a falar da droga também, da liberdade de usar a maconha. Era tanta coisa diferente, eu na minha cultura de um cara suburbano que vinha da periferia da Zona Leste, foi um impacto impressionante.
4. Seu trabalho teve influência direta? Se teve, em que sentido?
Se o trabalho teve uma influência direta? Sem dúvida. Eu comecei minha militância em 1963, estudava na Mooca, no Firmino de Proença, teve os jogos pan-americanos aqui em São Paulo, fui expulso da escola que estudava e passei a trabalhar no movimento secundarista e entrei na faculdade só em 69. Eu era da esquerda bem hard, bem periferia, adepto do Lamarca, do Marighela. Lógico que vim de Geraldo Vandré a Caetano Veloso, passando pelo Chico, então, esse trabalho era muito moderno. Agora na minha escola, na Geologia da USP, onde o pessoal adorava arte gráfica, o Pasquim era bebido, cara, e disputada aos tapas para comprar, mas distribuíam de graça. Então o Henfil começou a criar uma estética dos jornais do movimento estudantil, da igreja de esquerda. Quando você fala dos sindicatos, eu acho que tinha mais movimento de bairro, mais de comunidade, porque o Henfil era um filho da igreja católica, o irmão dele que veio de movimento de juventude, o Betinho, que o pessoal conhece mais da campanha contra a fome, mas eles eram da AP, da Ação Popular, oriundos de movimento da juventude universitária católica. A questão da hemofilia era uma história incrível. Lógico que foi imortalizado pela canção da Elis Regina, mas na época da anistia, 10 anos depois, com a volta do irmão do Henfil. O Henfil ajudou muito na formação do PT. Nessa época, aparecia muito gente de desenho em quadrinho, da Mafalda, que veio da Argentina, muita coisa do exterior, lembro que vinha coisa do Claudius, enfim, o quadrinho todo mundo lia, as tiras da Folha, tinha vários cartunistas, por exemplo, o pai da Laert, o Coutinho, era meu professor na geologia, a gente bebia das tiras, principalmente das tiras da Folha, mas o Pasquim era a verdadeira revolução cultural, gráfica.
5. Qual foi a impacto dos Quadrinhos e Charges do Henfil na Imprensa Sindical? E na esquerda?
Não sei bem da imprensa sindical, eu acompanhava mais o jornal Movimento, Opinião, o Em Tempo, foi uma revolução em toda a imprensa da esquerda influenciada pelo Henfil. Todo mundo queria saber qual era a última entrevista, a última fala, tinha uma época que ele falava das pessoas que morriam em vida, ele falava dos túmulos que os caras que falavam bobagem; puseram até a Clara Nunes uma vez, a Elis Regina também foi marcada como morta em vida, pessoas de esquerda que desbundavam. Tanto que a Elis, quando grava a música “O bêbado e o equilibrista”, para se redimir de uma besteira que ela fez ao cantar para os militares. No meu meio, era como se gente estivesse falando de Picasso. Nós achamos que o Henfil tinha a mesma importância que o Picasso tinha quando ele desenhou a Guernica, tal a importância que ele teve para a arte e estética brasileiras. Eu colecionava todos os jornais do Pasquim e tudo que o Henfil falava era uma coisa ultrapreservada, como ele enfrentava os militares, a ditadura, era muito diferenciado, moderno e corajoso. Era como se fosse a geração do cinema novo, por exemplo, o Tropicalismo, o Caetano, o Gil, Torquato, Gal, tinham uma restrição, como se fossem desbundados, já era uma geração que vinha adiante, do Geraldo Vandré, daquela coisa mais tradicional da música popular brasileira, os festivais de música, o Henfil era uma revolução conceitual, transformadora, definitiva, socialista, falava da questão da luta armada que era uma coisa ultraproibida com a maior naturalidade, do Sérgio Ricardo, do Glauber.
6. O que achou da iniciativa da Editora Noir em reunir estas entrevistas em um livro? Que efeito acha que este livro terá em você e nos demais leitores?
Achei importantíssima essa atitude da editora Noir em colecionar as entrevistas, principalmente para as novas gerações que conhecem muito pouco da obra e da importância do Henfil. Eu beberia essas edições todas e recomendaria até para os meus netos.
7. Henfil era um profissional multimídia, atuando na TV e no Cinema. O que achou das produções do cartunista em TV Home e Tanga, deu no New York Times?
Ele era REALMENTE um profissional multimídia, conseguiu entrar na televisão apesar de toda a censura, deu até no New York Times que era a coisa mais impressionante. Depois também as coisas do cinema, da retrospectiva do Henfil, aí começou a mudar muito, a atualizar, eu fui perdendo o contato, o meu contato foi mais até 69, 73, até a minha prisão. Depois não acompanhei mais, mudei de foco e o Pasquim também. Embora Henfil tenha entrado até nos meios de comunicação, na grande mídia, perdi esse contato.
8. Pra você, qual é o tamanho da falta que Henfil faz?
O Henfil é um personagem da humanidade e sua falta é terrível. Até as pessoas costumam dizer que não saberiam dizer o que foi a segunda guerra mundial se não fosse o Picasso e eu não teria problema nenhum em dizer que a gente não saberia o que foi a ditadura militar no Brasil se não fosse o Henfil, tão importante quanto Marighela, Lamarca e qualquer outro revolucionário, foi um revolucionário na arte da estética como o Glauber, Leila Diniz, Grande Otelo, Dina Sfat, Rogério Sganzerla, um gênio, era tudo isso e um pouco mais.
9. As novas gerações conhecem pouco do trabalho do Henfil. Apesar de uma exposição de originais no Centro Cultural Banco do Brasil (2005) no Rio e em SP ter tido público recorde na época, o trabalho dele ainda é pouco compartilhado nas redes. O que fazer pra melhorar isso? O livro organizado pelo Gonçalo Jr pode ajudar?
O livro pode ajudar, mas tem que haver uma reinserção. Veja a Mafalda, ela é eterna, do jeito que ela é colocada ela é atemporal, deveria ter um esforço para recolocar o Henfil não só no passado, mas também no presente. Ninguém vive só do passado, imagina o Henfil enfrentando o bolsonarismo, que coisa espetacular! Essa transposição temporal que é necessário fazer. Porque aqui no Brasil o que acontece é o seguinte: o que na ditadura os partidos atuais não reivindicam, nem a punição aos torturadores, nada que diz respeito à ditadura, por isso o bolsonarismo está aí. Seria necessário redesenhar e pegar o traço do Henfil para enfrentar as situações do presente para dar essa atemporalidade.
10. Como Henfil estaria reagindo à sanha totalitária e anti-democrática que abocanhou os três poderes?
Como ele estaria reagindo à sanha fascista? Ele ESTÁ reagindo, enquanto houver uma licença poética, uma atualização, o Henfil pode continuar através dos seus filhos, dos seus seguidores, a ter essa continuidade. Ele vive, esses caras que estão aí agora são uma cópia carbono suja do que era a ditadura, é só fazer as atualizações e as mudanças dos nomes.
11. Henfil foi um dos fundadores do PT, que se propunha a transformar radicalmente a sociedade. Esta décima terceira pergunta é o espaço pra suas considerações, não finais, mas futuristas. É possível ainda transformar o país de forma radical? O humor entra nisso?
Henfil foi um fundador do PT, ajudou muito o Lula, fez as primeiras camisetas, as primeiras artes junto com o Carlito Maia. Tem de transformar esse país de uma forma radical e o humor é fundamental, não tem nada que se faça sem humor, sem ironia, nós não enfrentamos o presente porque esquecemos o passado, esquecemos o Henfil, por isso estamos nessa merda que estamos hoje, esses caras que estão governando o Brasil são os piores descendentes da ditadura, nós partimos para uma social democracia sem enfrentar a ditadura, sem passar o passado a limpo, e eles voltaram. Você nunca vai ouvir falar nada do Torquato Neto, Rogério Sganzerla, Rogério Duprat, Betânia, Gal, esses trabalhos revolucionários que foram feitos à essência da ditadura, pois o Brasil atual não se interessa pela memória da resistência e vai levar muito tempo para eles abandonarem o poder. Por isso o Henfil é tão pouco conhecido. Do jeito que o PT se tornou conservador não sei dizer se o Henfil teria espaço na imprensa do PT. Uma coisa é o Lula e sua geração de revolucionários, outra coisa é o PT que é uma coisa muito conservadora, muito burocrática, isso você vê também na imprensa sindical. São poucos os cartunistas de ponta que tenham uma produção incrível. Essa arte, essa cultura, não entra nas estruturas partidárias e nem sindicais. Não têm mais a leveza e a mobilidade que o PT tinha em 1979, quando era um partido revolucionário. A arte está sempre à frente da revolução. Tem gente que fala que a arte não faz uma revolução. Isso é o maior equívoco. A arte é o canto, o prenúncio da revolução, você jamais saberia como foram os campos de concentração, a exploração no campo, se não fossem os artistas, Picasso, Portinari, você não saberia nada da humanidade, dos massacres, da escravidão, se não fossem as obras que expressassem esses momentos da história. Nunca ninguém fez uma fotografia de Zumbi dos Palmares, você não sabe como ele era, o jeito dele, isso vale para todos os momentos, você não saberia como Cristo teria sido crucificado se não fossem as obras de arte que traduziram esses grandes momentos da história, você jamais saberia o que foi um quilombo, o massacre dos indígenas ou o que foi Serra Pelada sem as fotos de Sebastião Salgado. Por isso Henfil foi um dos maiores revolucionários da ditadura brasileira. Viva Henfil, viva os cartunistas, viva o Pasquim, viva a toda a imprensa de esquerda alternativa que hoje equivale aos blogueiros. E viva Bira Dantas que me ensinou tudo de quadrinhos, de revolução e de resistência. Muito obrigado
CONTATO COM ADRIANO DIOGO
Adriano é geólogo formado pela USP e político brasileiro, militante pela democracia e pelos direitos humanos. Começou sua militância na década de sessenta no movimento secundarista. Foi perseguido, preso em 1973 e torturado no DOI-Codi de São Paulo. Teve quatro mandatos de vereador (de 1989 a 2003) ocupando-se das áreas do meio ambiente, da saúde pública, educação, moradia popular e das regiões periféricas. Em 2004 foi secretário de Verde e Meio Ambiente na prefeitura de Marta Suplicy. Foi eleito deputado estadual em três mandatos (2002, 2006 e 2010). Foi membro da Comissão de Direitos Humanos da ALESP, na qual presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva (que investigou e divulgou os crimes cometidos pela ditadura militar em nosso estado), o SOS Racismo e a CPI dos Trotes. Fez várias campanhas eleitorais usando Gibis em Quadrinhos como peça principal de propaganda.
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