Esta série de entrevistas foi uma iniciativa da AQC em apoio ao livro “Sick da Vida”, coletânea de entrevistas do cartunista Henfil organizadas pelo quadrinhista, jornalista, escritor e biógrafo Gonçalo Silva Junior. O livro foi lançado com sucesso na plataforma Catarse pela Editora Noir, recebeu 235 apoios e ultrapassou a meta para publicação em quase 50%, atingindo 147% e comprovando que as ideias do cartunista Henfil propagadas em suas entrevistas continuam sendo atuais e esclarecedoras. A AQC se sente orgulhosa em ter apoiado uma iniciativa tão incrível e necessária.https://www.catarse.me/henfil
1. Como você conheceu o trabalho do Henfil? Lembra da ocasião (onde, quem apresentou e qual era a revista ou jornal)?
Lembro claramente da primeira vez que ouvi falar do Henfil. Infelizmente foi no Jornal Hoje na televisão quando noticiaram sua morte. Quatro coisas me chamaram a atenção particularmente: 1. Eu estava com quase treze anos de idade, já lia quadrinhos há pelo menos seis, e colecionava havia exatos dois. Na época, embora já leitor da Chiclete com Banana, onde certamente ele devia ter sido citado, me surpreendi por noticiarem um cartunista que eu não conhecia pelo nome, e que era importante para ser noticiado na Globo. 2. Achei um barato o jogo de sílabas iniciais para formar o nome artístico. Pensei comigo mesmo: “Como eu nunca pensei numa ideia dessas!?”. 3. No noticiário (que depois passou a noite também no Jornal Nacional) mostravam em close o Henfil fazendo caretas sorridentes, percebi que ali estava um artista provocador, sarcástico. 4. Notei que a notícia teve algum impacto nos meus padrinhos (estava na casa deles na hora que passou a notícia). A primeira vez que li material do Henfil foi na escola com alguns colegas no final do mesmo semestre, eram umas tiras em que o Fradim saia falando que amava o Figueiredo, e na época eu achava engraçado, mesmo sem entender a ironia que ele queria expor (não sei se ainda hoje teria a sagacidade de compreender integralmente). Alguns meses depois li na revista Geraldão que o Glauco o homenageou, me pareceu mais provocador (já não era mais tempo de ser chamado de subversivo) do que eu já sabia que era.
2. Qual foi o impacto?
Como respondi antes, já tinha certeza de que não entendi o que li incialmente. Aos poucos fui lendo aleatoriamente o material dele em oportunidades. Até que em 1997 achei uma revista Fradim 14 da editora Codecri numa liquidação de encalhes de uma distribuidora no interior do Paraná a preço de bala. Ali tive um pouco mais de contato com a vida e acidez do autor, foi quando comecei a entender a abrangência e relevância da obra do Henfil, e consegui mais alguns números do Fradim em sebos. Poucos anos depois, como consequência de outra liquidação na mesma cidade (nesse caso foi de uma pessoa) ganhei de presente uma coletânea da Graúna. O trabalho do Henfil então me acertou em cheio, era de uma exploração irônica ímpar da miséria brasileira. Tinha horas que eu me sentia até mal de rir de suas piadas, aquilo era para chocar e causar reflexões, e o Henfil sabia que precisava nos fazer rir para aceitarmos o tapa na cara que a realidade nos dava. Demorou anos para ter a mesma percepção com outros autores.
3. O que chamou mais atenção: o humor escrito, as gags visuais ou o traço?
Várias coisas. Às vezes no desenho era um frade fazendo gesto obsceno, ora os personagens sem cenário e ainda assim sinalizava uma sequência. Mesmo diferente do traço que estava mais acostumado, achava muito bacana aquelas imagens em que apareciam miseráveis desfigurados. O humor ácido foi sem dúvida o ponto alto para mim. Gostaria de ver o Henfil hoje desobstruindo as barreiras do politicamente correto, certamente seria atacado por todos os lados, algo semelhante ao atentado do Charlie Hebdo poderia ocorrer a ele.
4. Seu trabalho teve influência direta? Se teve, em que sentido?
É muito bom poder apreciar a ironia e a acidez da linguagem do Henfil, era quase um diálogo, ou uma fuga àquelas conversas que não se podia ter com qualquer um. Infelizmente não é o tipo de linguagem que se poder ter com a maioria hoje. A ironia é uma figura de linguagem em que a pessoa que não a entende se sente ofendida ao invés de convidada a discutir o assunto ou apenas curtir a diversão em pauta.
5. Qual foi a impacto dos Quadrinhos e Charges do Henfil na Imprensa Sindical? E na esquerda?
Não posso responder sobre isso, pouquíssimas vezes tive contato com periódicos sindicais, e muito depois da morte do Henfil. Esses periódicos, assim como os sindicatos, que tive contato estavam abaixo do nível intelectual e produtivo do autor. Sobre a esquerda, só posso especular, creio que as charges do Henfil reverberavam as mudanças que a sociedade ambicionava na época. Provavelmente a esquerda se manifestava como a forma de viabilizar essas mudanças. Entre meus amigos na época, só ríamos das piadas dele até onde conseguíamos entender, sem qualquer viés de orientação política, apenas diversão, não haveria o que apreciar politicamente nem era necessário, apenas aquelas piadas que pareciam mais inteligentes que as dos gibis Disney e Turma da Mônica. Ele produzia um humor que poderia fazer sentido a todas as idades, como o Quino fazia, porém, o Henfil era mais sacana.
6. Acompanhava as entrevistas do Henfil na Imprensa? Teve alguma que lhe marcou? Porquê?
Nenhuma, primeira vez que o vi foi na notícia de sua morte. Nos gibis do Fradim gostava muito das crônicas que ele reproduziu do tempo que passou nos EUA, creio que o título era Crônicas de um Subdesenvolvido. Muitas li depois que visitei o país duas vezes (em 2008 e 2012), aquilo reproduzia quase integralmente os sentimentos e percepções que tive por lá, e quando voltei.
7. O que achou da iniciativa da Editora Noir em reunir estas entrevistas em um livro? Que efeito acha que este livro terá em você e nos demais leitores?
Será interessante ler tal livro, desde que tanto o editor quanto os leitores saibam se situar no tempo, entender que retratam uma época que passou, e não devemos retroceder a ela. Espero que a edição do livro e a leitura dele passem longe de paixões e engajamentos. Sejam mais focados na vida e obra do Henfil.
8. Henfil era um profissional multimídia, atuando na TV e no Cinema. O que achou das produções do cartunista em TV Home e Tanga, deu no New York Times?
Não acompanhei na época. Tenho certeza que perdi muito, tenho o mesmo sentimento em relação ao jornalista Paulo Francis.
9. Pra você, qual é o tamanho da falta que Henfil faz?
Ele teve sucessores que, se tiveram seu trabalho como referência, não eram ele próprio. Certamente faz falta, seria muito divertido tê-lo presente na imprensa atualmente. A morte dele foi consequência da contaminação pelo HIV em função da hemofilia, é lamentável pensar que com um pouco mais de controle nos estoques de sangue da época, ou mesmo os tratamentos para soropositivos que vieram depois, permitiriam que ele pudesse estar vivo, produzindo e bem de saúde hoje em dia. Faltou muito pouco tempo para isso, infelizmente. O legado é que casos famosos como o dele, aceleraram as pesquisas pela maior eficiência desses meios de detecção e tratamento.
10. As novas gerações conhecem pouco do trabalho do Henfil. Apesar de uma exposição de originais no Centro Cultural Banco do Brasil (2005) no Rio e em SP ter tido público recorde na época. O que fazer pra melhorar isso? O livro organizado pelo Gonçalo Jr pode ajudar?
É certo que ajuda, mas é difícil quantificar, pois a abrangência de livros como os do Gonçalo fica muito restrita aos leitores de quadrinhos, e parte desse público já é entusiasta do Henfil. Certamente irá ajudar a ampliar o conhecimento sobre o artista, e será mais um tijolo na bibliografia dessa figura importante. O Gonçalo tem a gana de jornalista, ele usa muitas páginas para situar os leitores nos cenários da época (até repete isso ao longo do texto) e em suas obras sempre gosta de trazer algo que ninguém mais sabe, como um furo de reportagem, vamos ver qual será a novidade neste livro. Sobre o que mais pode ser feito para melhorar é analisar e publicar de forma a perpetuar o trabalho do artista, se houver algum interesse além da arte, vai até criar rejeição ao artista. Já quanto à publicação, acho que não deve se limitar ao vício dos livros luxuosos. Como já foi questão desta entrevista, Henfil foi da imprensa, comunicação de massa, isso foi um dos fatores para ele alcançar o status a que chegou. A revista do Fradim teve numeração maior que a maioria das revistas em quadrinhos nacionais, ela atingia público adulto a preço barato, foi a fórmula do sucesso, um sucesso que o mercado de quadrinhos abriu mão. Deixar claro que o Henfil merece coletâneas luxuosas do seu trabalho, mas essa modalidade não servirá para atingir público.
11. O Brasil hoje está ‘sick da vida’ com tantos ataques à democracia, à inclusão social, racial e de gênero, à distribuição de renda? Ou a coisa precisa piorar mais pro povo reagir?
O Brasil de hoje é muito melhor que o da época do Henfil, certamente ele estaria mais contente com o país de hoje. A democracia evoluiu e está mais forte, as pessoas estão votando (quando ele morreu havia uma ou duas eleições com analfabetos com direito de voto), o poder está alternando; a fome diminuiu; inclusão e distribuição de renda aumentaram, mesmo que ainda numa base não sustentável. A educação e informação estão mais disponíveis às pessoas, mesmo que a qualidade dessas duas parcelas seja insuficiente. De pior, a crítica e os questionamentos se reduziram às preferências pessoais, e não aos fatos. Há diferenças a serem resolvidas, mas não é interesse de quem possa resolver isso abrir mão de privilégios. É melhor não torcer para a coisa piorar, melhor é olhar para o futuro do que retroceder para achar que conseguiremos corrigir o passado.
12. Como Henfil estaria reagindo à sanha fascista, totalitária e anti-democrática que abocanhou os três poderes?
Acreditar que exista essa sanha, e que tenha tomado os poderes da República é um ato de diminuir a importância do país a poucas personalidades, não é assim que se deve discutir os assuntos, pois não é a realidade. Hoje há fenômenos de mídia que exaltam fatos pequenos, e dentro dela os agentes públicos encontraram uma forma midiática de arregimentar seu público, são as regras naturais e consequenciais do jogo que se construiu. Se é possível mudar isso, vai levar tempo. De volta ao Henfil, nunca se saberá como aconteceria, ele já morreu e não se pode saber o quanto ele se orgulharia ou se decepcionaria com a situação. Se for seguida a linha do humor de alto nível que ele produzia, certamente avacalharia todos os presidentes, autoridades e demais figuras públicas relevantes, como outros também fizeram. A diferença é que na época havia mais respeito às personalidades e ao público, e o importante seria o humor. Hoje a criticidade e capacidade dos autores os levam apenas a atacar agressivamente somente as personalidades que eles não gostam, quem perdeu com isso foi o humor.
13. Henfil foi um dos fundadores do PT, que se propunha a transformar radicalmente a sociedade. Esta décima terceira pergunta é o espaço pra suas considerações, não finais, mas futuristas. É possível ainda transformar o país de forma radical? O humor entra nisso?
Eu desconhecia que ele fosse um dos fundadores do PT, ele talvez se decepcionaria com uns e se orgulharia de outros caminhos tomados pelo partido. Haveria espaço para ele destilar seu humor incrível. Em todos os exemplos da humanidade não foi observado benefício em radicalismo, a sociedade sempre evitou isso e, quando se viu obrigada a fazê-lo em forma de protesto, não foram boas as consequências. A moderação e diálogo com respeito é a forma de abrandar e fortalecer as mudanças. Os dois maiores países do nosso continente experimentam retrocessos há décadas ao ceder ao radicalismo. A África do Sul precisava de uma ação radical, e uma das maiores vítimas do Regime ao qual o país estava submetido assumiu o poder sem rancores e com a agenda de seguir em frente, não de resolver o passado. Sobre onde o humor entra nisso, espero que como registrador apenas, pois governos são assuntos muito sérios.
QUEM É DANIEL SAKS
Daniel Saks, engenheiro químico, é colecionador de gibis desde 1985. Apaixonado por sua coleção e pelo quadrinho nacional, se dedicou à pesquisa do mercado de revistas. Por uma coincidência e felicidade de eventos se tornou editor independente em 2015 quando relançou os clássicos títulos da editora D-Arte, Calafrio e Mestres do Terror.
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