A identidade visual do Troféu Angelo Agostini

Enquanto nos preparamos para iniciar as atividades do 40º Troféu Angelo Agostini (muito em breve), vamos conhecer um pouco sobre a identidade visual do prêmio nas palavras do designer Flavio Roberto Mota, que cuida disso desde a 35ª edição.

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O desenvolvimento da identidade visual para a 39ª edição do Troféu Angelo Agostini foi um trabalho que vale a pena deixar registrado.

Quando eu comecei a trabalhar no design da AQC, a ideia era criar uma lógica visual que permitisse que, a cada edição, desse para criar visuais temáticos, para que determinados gêneros, artistas, movimentos, etc. dentro dos quadrinhos pudessem ser evidenciados, homenageados, ganhassem maior visibilidade desde a identidade visual, podendo se expandir também para os movimentos artísticos, manifestações culturais e demais linguagens que influenciam as HQs.

A primeira edição que esse material foi aplicado foi a do 35º AA, mas, como ainda estava tudo bastante incipiente, as mudanças começaram tímidas para aos poucos se tornar mais evidentes. Quase todas as edições iniciais foram baseadas em composições e arranjos com retículas coloridas, enquanto que o grande diferencial estava por conta da criação do selo do Troféu, até então inexistente.

Eu aproveitei para ajustar o logo da AQC, para que ela permitisse uma identidade visual completa. Com o ajuste realizado, foi possível determinar uma fonte para usar no título “Troféu Angelo Agostini” (Penumbra Sans) e para as demais aplicações (Gotham Family Font).

No entanto, a pandemia estremeceu todo o esquema de trabalho que já estávamos acostumados na AQC, tanto que tivemos que nos adaptar ao formato da premiação à distância e em estabelecer uma produção digital que não estava nos planos da equipe. Muita gente teve dificuldades, seja ela financeira, seja de saúde, seja mental, todos ficaram extremamente abalados. Muitos planos tiveram que ser adiados e até mesmo cancelados e essa dificuldade se refletiu na organização, assim como também na identidade visual das edições do Angelo Agostini que seguiram esse período.

Justamente por conta desse período extremamente atribulado, quando enfim, a COVID recuou, as mudanças na política assinalaram pelo menos que alguma civilidade seria possível de ser resgatada, nós sentimos novamente que era preciso deixar claro a importância de se respirar um ar puro e livre da convivência pacífica entre os diferentes, que é possível haver democracia, com liberdade e respeito à todos, todas e todes. Era preciso comemorar, celebrar o fato de que somos um país multicultural, multifacetado e que todos são bem vindos e aceitos.

A 39ª edição seria a primeira a ser celebrada depois dessa era das trevas, era como se a primavera surgisse de um longo e tenebroso inverno, e, como em toda primavera, era necessário novas luzes e cores, para a alegria reinar, inspirando e resgatando a esperança a todos os seres. Isso nunca havia ficado tão evidente para mim, e, por consequência, senti a necessidade que essa edição inaugurasse avanço maior na identidade visual, que nós pudéssemos demarcar um novo tempo, um novo movimento, uma nova realidade, para que as trevas da ignorância, do medo e do ódio nunca mais retorne das suas próprias trevas existenciais.

Logo, a intenção ao criar a identidade visual para o 39º Troféu Angelo Agostini foi de representar as principais massas populacionais que construíram esse país: os negros, que vieram expulsos de seus lares por 400 anos de uma escravidão desumana, dos indígenas, nossos verdadeiros pais, avós e bisavós, que mesmo vendo seu mundo se destruído, suas terras expropriadas, sua identidade, cultura e espiritualidade reduzida quase que a pó, tiveram a grandeza de nos dar toda a base para que fôssemos o povo que somos, por mais que a grande maioria dos brasileiros sequer tenha consciência do peso da herança indígena em nosso espírito coletivo. A terceira massa populacional homenageada foi a dos nordestinos, que numa onda migratória gigantesca, por décadas e décadas forneceu a mão de obra e o intelecto necessário para que os grandes centros pudessem desenvolver todo o arcabouço da sua civilidade e que passou sempre inviabilizado, desprezado, humilhado e explorado.

O caminho para essa representatividade foi usar como referência os grafismos relativos a sua cultura, pesquisar dentre o tipo de grafismo de cada um desses povos, elementos que fossem mais comuns neles que permitam ser agregados no nosso material.

Os grafismo africanos revelaram principalmente um uso característico de cores com uma carga alta de saturação e predominância de tons terrosos, os grafismos indígenas já eram mais restritos no quesito cor, enquanto que o grafismo nordestino era o que apresentava uma maior gama de tons, geralmente numa paleta mais clara, dando a impressão de certa luminosidade. Com relação às cores foi escolhida uma palheta não muito saturada para os logos e mais clara para o fundo, sendo esse predominantemente amarelo com alguns elementos puxando levemente para tons frios enquanto o logo ficou com as cores vermelho e verde um pouco mais escurecidas, complementadas por branco.

Com relação aos desenhos a escolha foi um pouco mais difícil. Nos grafismos africanos havia uma quantidade e variedade de elementos que permitia uma possibilidade gigantesca de padrões gráficos, como os exemplos a seguir.

Alguns elementos chamaram atenção, como as espirais que algumas vezes compunham grafismos que podiam se assemelhar ao sol ou alguma flor, por isso foi escolhido esse tipo de representação para ser utilizada no fundo amarelo, mas sem grande destaque.

Em compensação, o elemento que demonstrou-se presente na maioria dos grafismos foras as formas geométricas concêntricas. Logo, criamos um padrão de quadrados concêntricos dispostos em tamanhos diferentes para margear o fundo. Essa mesma ideia serviu para também criarmos um fundo com quadrados concêntricos alinhados de maneira uniforme, que foi aplicado ao logo do 39º AA.

Analisando os grafismos indígenas percebemos um curioso ponto comum entre eles.

Os desenhos em si variavam também de maneira ampla, embora não houvesse representações de figuras como o sol ou algum animal. O que saltou aos olhos é o fato de que, seja qual fosse o padrão indígena, a disposição de linhas diagonais era predominante, bem mais do que nos grafismos africanos. Por isso, a escolha foi a de representar os traços diagonais alinhados se revezando no seu sentido. Como variação para ser aplicado ao logo do 39ª AA, fizemos um padrão usando os mesmos quadrados concêntricos, só que agora na posição diagonal.

Ainda estava faltando acrescentar a identidade visual um toque de brasilidade representando os imigrantes nordestinos que fugindo da fome e da miséria que sofreram por tantos anos de secas, se espalhando pelos quatro cantos, ajudando a construir esse país com muito suor, dedicação e muitas vezes até mesmo sangue.

Tivemos a oportunidade de conhecer um pouco mais da arte popular do nordeste, seus quadros, artesanatos, gravuras, a literatura do cordel, e nos chamou atenção a produção do Movimento Armorial, que teve como um dos expoentes o mestre Ariano Suassuna.

Embora os elementos gráficos da estética da arte nordestina seja riquíssima, um elemento persistia quase que onipresente em praticamente todas as suas manifestações, que é a presença do ponto, seja ele redondo, em forma de traços curtos, folhas, estrelas ou cruzes, essa pontuação parece remeter a uma herança medieval, assim como muitos dos elementos, para nos lembrar que a nossa origem européia não é nobre, mas popular, ibérica e moura.

De posse dessas três formas de representatividade, foi então realizada a finalização do selo oficial para o nosso 39º Troféu Angelo Agostini, que celebrou a diversidade e resgatou essa conexão com a base dos artistas de quadrinhos premiando mulheres em suas principais categorias, num resultado surpreendente até mesmo para o restante da equipe organizadora, além de ter sido a primeira cerimônia, ainda virtual, em que trouxemos a questão da realidade e dificuldades dos trabalhadores de quadrinhos no Brasil, para que a democratização ultrapasse os limites da representatividade e possa ser construído também pela luta da categoria visando conquistas reais para os artistas que representamos.

É preciso que essa caminhada, no entanto, prossiga, solidificando esse processo de representatividade e democratização para os quadrinhos nacionais, e, vamos agora para a 40ª edição montar mais um trabalho, com a ajuda e participação de todos que assim desejarem e quiser construir uma AQC e um Troféu Angelo Agostini cada vez mais brasileiro, reforçando que os quadrinhos também fazem parte da cultura brasileira e que precisa ser devidamente valorizada.

– Flavio Roberto Mota

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